Almas à Venda

Alguém me perguntou se o filme “Almas à Venda” (“Cold Souls”, 2009) era com zumbis – ou de terror. Eu ri. Não, não é. O título em português pode até lembrar algo com demônios, trevas e outras mumunhas (ou um bom melodrama daqueles rasgados). Mas não é isso não.

Quer dizer, só depois percebi que o filme dirigido e escrito pela francesa Sophie Barthes é sobre mortos-vivos sim. E tem um climão soturno, cheiro de chuva, além de um toque noir, com hotéis suspeitos e vilões russos.

Mas ninguém come o cérebro de ninguém. Na verdade, metafisicamente falando, até aparecem uns sugadores de almas sim (e procure o significado de “alma” no dicionário e você verá que o treco é realmente complexo).

Não tô enrolando, não. É que o filme é difícil de definir (mas prazeroso de decifrar). “Almas à Venda” é uma daquelas surpresas, um filme Kinder Ovo, que parece apenas saboroso, mas esconde um bom quebra-cabeça.

Começa com Paul Giamatti (“Sideways”, “American Splendor”) num palco. Ele está ensaiando “Tio Vânia” e, pelo jeito, enfrenta alguns tormentos (bom, quem não enfrenta tormento com os russos…).

Descobrimos que Paul Giamatti é mesmo Paul Giamatti. Como um ator de sucesso e de grandes papéis, ele está cansado e perturbado. Não consegue mais viver com sua pesada alma de artista.

Impregnado de tristezas, dramas e tragédias, Paul Giamatti quer ser mais leve, quer rir, quer ficar com a cabeça um pouco vazia, quer se desligar do universo e não pensar em nada nem nos outros.

O que ele faz? Resolve entrar para a política e se candidata a deputado federal no Brasil. Não, não é isso, não. Ele acaba no consultório do Doutor Flintstein (interpretado pelo marcante David Strathaim), um sujeito que descobriu uma maneira de extirpar almas.

A operação é simples. Você deita numa geringonça, alguém aperta uns botões e pimba. Você está desalmado. E, como dizem os publicitários, com um “plus a mais”: sua alma toma a forma de algo e fica guardada confortavelmente num tubo. A do Paul Giamatti vira um solitário… grão-de-bico.

Legal, né? Antes que você comece a desconfiar da sanidade da roteirista, menciono que contei apenas uns minutos do filme. Logo a gente vê que esses pensamentos podem ser transportados e recolocados. O que agita um lucrativo mercado negro de almas comandado por russos a partir de São Petersburgo (lindamente fotografada no inverno).

Pode começar a pensar aí nas referências. Charlie Kaufman e seus roteiros para “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, “Quero Ser John Malkovich” e o injustiçado “Sinédoque NY” puxam a fila. Há muito também daquele humor existencialista (e depressivo/depreciativo) de Woody Allen (a máquina parece com a do “O Dorminhoco”) e, obviamente, o peso dos autores russos.

Toda a maluquice esconde um roteiro bem costurado, cheio de suspense, várias beldades russas (que interessante figura enigmática é Dina Korzun) e diversas piadas com astros de Hollywood (uma modelo é louca para conseguir a alma de Al Pacino).

Curiosíssimo, estranho e com uma condução primorosa de Paul Giamatti (um baita ator), “Almas à Venda” é uma dessas descobertas que fazem a gente acreditar que nem tudo foi inventado nesse mundo.

O sumo pode ser o mesmo: pessoa desesperada precisa perder tudo para descobrir o real valor de sua vida (aliás, isso também é o que acontece com o Shrek na sua nova aventura, por exemplo). Mas o jeito de preparo é deliciosamente inventivo.

E não é todo dia que temos um zumbi tão vivo como Paul Giamatti andando por aí.

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