É só na última sequência de “O Bem Amado”, de Guel Arraes, que a questão política do longa fica dramaticamente às claras: sim, Sucupira é o Brasil.
A platéia concorda e até sente um travo amargo na boca. Mas as luzes aparecem, a trilha sonora bomba no som Dolby e os eleitores saem da sala remediados, cantarolando o jingle que serve de tema para Odorico Paraguaçu, o personagem político da dramaturgia nacional que mais caiu no gosto popular.
Como farsa, “O Bem Amado” até que às vezes funciona. Guel Arraes é esperto. Ele sabe conduzir uma história e, principalmente, lidar com muitas informações ao mesmo tempo.
A edição ágil, a fotografia berrante, a pentelha trilha sonora e o frenético entra e sai de personagens podem até cansar, mas deixam a turma ligada durante duas horas.
A história é bem conhecida (pelo menos para aqueles com mais de 30 e tantos). Era uma peça em 1962, novela na década de 70, série nos anos 80 e agora filme.
Odorico Paraguaçu (Nanini) é o prefeito de Sucupira, balneário cuja principal fonte de renda é o turismo. Sua grande promessa no período eleitoral foi construir um faraônico cemitério.
Pressionado pelo seu inimigo político Vladimir (Tonico Pereira), dono do jornal “A Trombeta”, Odorico começa a fraudar o erário para erguer o mausoléu dos mortos.
Porém, não consegue inaugurar o seu legado devido a uma crise de defuntos no município. Sem mortos, como fazer pomposos enterros?
Enquanto tenta arranjar um falecido, ele ainda administra a sua viuvez se envolvendo com as solteironas Irmãs Cajazeiras (Zezé Polessa, Andréa Beltrão e Drica Moraes).
A aposta no texto de Dias Gomes é certeira. O discurso de Odorico segue engraçadíssimo (sempre abusando de advérbios e assertivas). A história é lotada de reviravoltas e bons personagens.
Mas… No pacote, Guel também ganhou um período (os anos 60). Portanto, para conquistar os jovens e explicar suas alegorias, há Neco (Caio Blat), um jornalista responsável por nos ensinar a ver a história.
Esse didatismo atravanca a ação e ainda nos empurra para um estranho romance com Violeta (Maria Flor). Certamente as cenas mais deslocadas do filme.
Não apenas os pombinhos parecem estar fora de lugar. Os relacionamentos com as Cajazeiras também seguem ligeiros, sem propósito.
Dirceu Borboleta (Matheus Nachtergaele) é outro em busca de um espaço que nunca vem.
O que importa mesmo é Odorico e seus discursos, sua volúpia pelo poder, sua capacidade de engrupir e tentar se perpetuar na cadeira de prefeito.
Nanini nos convence pela insistência. Seu jeitão coronelesco e a sua fala rococó envolvem e acabam tomando conta do filme.
Percebe-se uma luta de Guel e Cláudio Paiva (roteiristas) para atualizar tudo o que for possível; espremer rapidamente um caldo complexo de tramas e subtramas.
Então temos os cortes rápidos, fotonovelas, planos na imaginação… São diversos os recursos de montagem e de exposição. Sentimos o suor do diretor para fazer a coisa andar.
Para além de uma sátira ligeira, “O Bem Amado” deixa uma pulga mais séria pairando no ar.
Só há espaço nos cinemas brasileiros para a alegoria política?
Continuamos fazendo piada do passado, um cinema café-com-leite, sem grandes alternâncias, remoendo o drama do regime militar (este sim, período tratado com rigor e diversidade de gêneros) e parando estranhamente na redemocratização.
Cadê Tancredo, Sarney, Collor, Itamar, a compra de votos para a reeleição, ACM, o fatídico debate entre Collor e Lula, mensalões, dinheiros na cueca, FHC, bastidores de Brasília, arapongas?
Nem o oficial “Lula – O Filho do Brasil” se atreveu a uma aproximação contemporânea.
Vale a pena produzir dramas, suspenses, policiais sobre políticos no Brasil? Há dinheiro – e talentos – pra isso? Ou o que pega mesmo é a alegoria, o delírio e a piada passadista?
Enquanto isso, resta pensarmos como Godard: toda imagem é um ato político (não sei se é bem isso ou se foi mesmo Godard, mas a frase é boa).
De qualquer maneira, pode ser um excelente momento para começar a levar os Odoricos Paraguaçus a sério e ver que cinema sai disso.

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