Numa das entrevistas que Woody Allen deu para o jornalista Eric Lax (reunidas no fabuloso “Conversas com Woody Allen”, da Cosac Naify), o diretor nova-iorquino comenta sobre a sua grande admiração pelos filmes dramáticos.
“[…] a comédia tem menos valor do que a coisa séria. Tem menos impacto, e acho que por uma boa razão. Quando a comédia aborda um problema, ela brinca com ele, mas não resolve. O drama trabalha a questão de um modo emocionalmente mais satisfatório. Não quero parecer brutal, mas existe algo de imaturo, de segunda linha, em termos de satisfação, quando se compara a comédia com o drama”, afirma Allen.
Sendo esmagados pelo maiúsculo “Vincere”, de Marco Bellocchio, compreendemos a envergadura e a beleza da constatação acima.
Que enorme filme italiano está em cartaz em São Paulo (inexplicavelmente num único endereço, o Cinesesc).
Acompanhar “Vincere” já é um evento da cidade. Mesmo as sessões vespertinas exibem filas que serpenteiam pela rua Augusta.
Há uma espécie de comunhão, de alegria no meio do público. A grande maioria tem mais de cinqüenta anos. E os jovens que se arriscam levam no semblante um olhar atencioso, respeitoso.
O longa narra a trajetória de Ida Dalser, amante de Benito Mussolini que foi calada e encarcerada em diversas instituições mentais, além de ter o filho (dela e do Il Duce) seqüestrado pelo regime fascista.
Fã ardorosa do governante italiano muito antes de ele chegar ao poder, Ida é jogada no lixo da história porque insistia em ser reconhecida pelo amado (mesmo quando este já era o todo poderoso ditador e pregava a união familiar).
Tomada pela paixão, ela recusa seu papel político, o de amante rejeitada. E por isso mergulha numa incansável luta por justiça.
A traição é ainda maior, pois Ida não apenas dedicou sua vida ao ditador, como foi responsável por emprestar dinheiro, amor e solidariedade a um jovem Mussolini.
Bellocchio utiliza uma levada operística, realça o drama e potencializa as artes para vingar Ida. E, simultaneamente, recupera valiosos cinejornais para documentar com precisão o passado.
Com interpretações magistrais (Giovanna Mezzogiorno e Filippo Timi formam uma dupla infernal), sequências deslumbrantes (como esquecer Ida jogando cartas por entre as grades do convento/hospício?), Bellocchio reafirma o valor do drama para contemplar tudo o que a história oficial insiste em ignorar.
Mussolini pode ter limpado quase tudo (e dizem as folhas que Berlusconi tenta desesperadamente fazer a mesma coisa), mas parece sempre existir a arte para registrar os oprimidos.
Cada plano discute com delicada complexidade o poder das imagens, do teatro político e das instituições (em especial o da igreja católica).
Não só as revoluções são debatidas num cinema, como é vendo um filme de Charles Chaplin que Ida Dalser se emociona e percebe que uma tela pode revelar nossas angústias mais íntimas (a cena em que assiste a “O Garoto” é uma das mais belas do cinema recente).
Curioso que no dia seguinte em que vi “Vincere”, assisti ao “Sem Reservas”, programa do chef e escritor Anthony Bourdain, que justamente se passava em Veneza.
Ali, mesmo mantendo sua gaiatice, o apresentador adquiriu um ar melancólico, dramático. No meio daqueles pratos besuntados em história e sendo carregado por garrafas de vinhos enternecedores, ele parecia sacar que Veneza é a perfeita metáfora de toda a Itália.
É um lugar absurdamente contaminado pela arte que insiste em afundar, levando junto parte fundamental da nossa civilização.
Ao escavar os labirintos de Veneza, Bourdain farejava outras Idas Dalsers e permanecia ávido por contar a trajetória de coisas que ainda hoje estão escondidas (seja pelo autoritarismo ou pela miséria humana).
Ainda bem que há Bourdain. Ainda bem que há Bellocchio. Artistas sempre prontos a nos lembrar a superioridade do drama e a importância do povo italiano.

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