Desde que o cinema argentino começou a passar com força no Brasil no final do século passado, virou piada comentar que um filme brasileiro, quando mostra, principalmente, certas qualidades de roteiro, “parece ter sido feito na Argentina”.
De fato, os hermanos se aprofundaram em técnica e continuaram apostando em escolas, formando diretores, editores, roteiristas capazes de mexerem muito bem no feijão com arroz – o que permite tentar pratos mais elaborados quando o tempo e o dinheiro aparecem.
Essa educação formal funciona até agora, fazendo da Argentina uma boa exportadora de mão-de-obra para produtos audiovisuais em Hollywood e até mesmo no Brasil (o sucesso do CQC – e de outros programas de TV realizados por produtoras argentinas – muito se dá graças ao cuidado que técnicos “de fuera” têm com a imagem).
Mas, sem ideias, todo esse aparato educacional poderia ter rendido apenas meia dúzia de obras “bem filmadas” ou alguns prêmios artísticos em festivais europeus. Só que junto com esse domínio da técnica apareceu uma intensa e aparentemente inesgotável bonança criativa. Nas última década, além de saber mexer numa câmera, o argentino encontrou um tema: a classe média.
Los muchachos marcaram golaços ao narrarem as agruras de uma classe média – portenha, na maioria das vezes – que se vê ano a ano perdendo poder aquisitivo, lidando com o aumento da violência e encarando o drama da inflação.
É uma abordagem realista, quase sempre carinhosa, com grandes diálogos, personagens marcantes, certo humor, preocupação política e social (tudo resumido em O Segredo dos Seus Olhos, poderosa concisão do cinema argentino desse período) e uma cara: Ricardo Darín.
Tanto que conseguimos traçar um honesto painel histórico da decadência econômica de certa classe argentina somente com filmes produzidos sobre o tema nos últimos dez anos.
Então chegamos ao envolvente e recente O Homem ao Lado, de Mariano Cohn e Gastón Duprat. Agora sim o conflito de classes, a violência, a miséria começam a invadir até mesmo uma casa projetada pelo suíço Le Corbusier. Ao mostrar o choque entre dois vizinhos (os excelentes Rafael Spregelburd e Daniel Aráoz), o roteirista Andrés Duprat parece ter escrito um filme… brasileiro, tamanha a presença de flanelinhas e de uma miséria escamoteada. Há ali uma imensa mordacidade em cima dessa classe média metida, falsamente culta (a cena em que analisam uma música é genial), e um pequeno elogio dos homens simples, toscos. Tudo belamente encenado na sequência em que Leonardo (Rafael) descreve o terrível passeio que deu pelas ruas de Buenos Aires com Victor (Daniel).
Por vezes, até mesmo é possível lembrar de Ugo Giorgetti, um cineasta preocupado com a arquitetura em seus filmes e que colocou esse conflitos nos injustamente esquecidos Sábado e Festa.
Talvez o Brasil caminhe para uma trajetória inversa. Daqui a alguns anos, poderemos enxergar melhor o país e o tal crescimento da classe C a partir de Cidade de Deus até aquela dramédia que será sucesso em 2020 ao contar os perrengues que os ex-pobres estarão passando. Pelo menos temos uma boa referência. Há algum tempo o cinema argentino já nos conta como é viver numa país “meio pobre e meio rico”.
E o cinema argentino? Será que, dentro dessa lógica, em 2020 lançara seu Ciudad de Díos, promovendo a “cosmética da fome” numa Buenos Aires tomada pela favelização?

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