Histórias de lama e merda

Na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano, o quadrinista Joe Sacco explicou por que pulou do jornalismo – ele se formou pela Universidade de Oregon, nos Estados Unidos – para o desenho. Praticou a profissão, mas logo ganhou visibilidade com as histórias em quadrinhos na revista Yahoo, que ele mesmo produziu e editou entre 1988 e 1992.

Desde então, Sacco se tornou um eficaz e famoso cronista da guerra e da violência. Palestina – Uma Nação Ocupada, Área de Segurança Gorazde e Notas Sobre Gaza são títulos que ocupam o mesmo patamar dos relatos cinematográficos ou jornalísticos mais contundentes e dramáticos sobre regiões em conflito.

Com um texto primoroso e interesse no factual, o que o motivou a colocar também em traços essas narrativas? A lama.

Segundo ele, o visual da guerra é tão impressionante que nenhum escrito daria conta do recado. Ao visitar lugares tomados pela brutalidade, Sacco se impressionou com a quantidade de lama por todos os cantos. Há uma sujeira visual, como se a natureza mostrasse seu desagrado, embaralhando elementos e tirando a possibilidade de harmonia.

Ao descrever apenas com palavras o que via, Sacco achou que seria obrigado a anotar “e muita lama” em todos os parágrafos. Para ele, seria insuficiente comunicar com talento e estilo – e apenas uma vez – numa reportagem que existe uma lama imunda em certas zonas de guerra.

A literatura segue algumas regras que barram a dor de Sacco. Se fizesse um livro, seus capítulos seriam compostos com frases assim: “balas ricocheteavam em paredes esburacadas por tiros de outra guerra e caíam na lama. Um soldado se arrastava na lama, tentando alcançar um amigo morto, que estava com lama saindo pela boca tingida de vermelho. Atrás de mim escutei passos cheios de lama. Eram crianças que brincavam na lama, como se nada daquilo pertencesse as suas rotinas – de lama”.

Impossibilitado por motivos estéticos de colocar “lama” por todos os lados, ele resolveu seu dilema estilístico ao desenhar “a lama”. Assim, hoje tem certeza que consegue transmitir certo horror em cada página. A lama está lá, por todos os lados e quadros. Não precisa mais ser mencionada, apenas vista. Sacco saiu do jornalismo para fazer “jornalismo em quadrinhos”. Com muita lama, claro.

A dificuldade de retratar com certa fidelidade – e escapando do roteiro dramático tradicional – a guerra também é a preocupação do jornalista Peter Beaumont, do The Observer, em seu livro A Vida Secreta da Guerra (Companhia das Letras).

Suas reflexões passam por como um repórter tem a própria vida modificada após se aproximar da violência até de que maneira passar a informação de uma atrocidade (como falar sobre cabeças decepadas que ficam penduradas em estacas no meio da estrada?).

Em um dos capítulos, Beaumont também trata de algo aparentemente indescritível: o cheiro da guerra. Se Joe Sacco resolveu o problema da lama ao mostrá-la, o que fazer com o odor?

“Onde há batalhas, sempre há merda. Merda e cartuchos de bala”, escreve o repórter inglês. Não apenas casas e pessoas são atingidas e destruídas por mísseis e bombas. Banheiros também acabam sendo estilhaçados, jogando excremento por todos os cantos.

Ao visitar o compound (espécie de fortaleza) onde o mulá Omar, líder do Taleban que governava o Afeganistão, morava, Beaumont tenta “explicar” o cheiro da morte: “Em certos lugares há um cheiro mais desagradável. Um dos afegãos armados que agora circulam em enxames pelo compound, em busca de algo para pilhar entre as ruínas, aparece com a ponta do turbante sobre o rosto. Conta que há corpos enterrados nos escombros – um sob o monturo em que estamos pisando e outros dois por perto. Então sinto esse cheiro horrível, gravado no fundo do cérebro humano, que afeta tanto o paladar quanto o olfato, amargo como um veneno”.

Descrever o horror da guerra ainda é um desafio para artistas e jornalistas. Como falar em fim do romance, fim da imprensa, fim da originalidade na arte, se o mundo não pára de produzir novas merdas e lamas?

Cada vez mais precisamos de pessoas capazes de nos explicar e mostrar o que acontece nesse lado escuro do homem.

*

The Artist, um filme mudo e preto e branco, foi escolhido o melhor do ano pelos Críticos Cinematográficos de Nova York. Seu diretor, Michel Hazanavicius, levou o prêmio de melhor diretor.

Mudo e em PB. Em 2011. Isso quer dizer alguma coisa, não? Ou é apenas um exercício estético de cinéfilo para cinéfilos?

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