Falando sozinho em “Fina Estampa”: uma teoria

Pode ser coincidência, mas todas as cenas a que assisti da novela Fina Estampa traziam personagens fazendo solilóquios em voz alta. Tereza Cristina, Pereirão, Pereirinha, Crô, Teodora e todo o núcleo duro da novela fala sozinho – e bastante. Basta ficarem alguns segundos sem companhia para soltarem suas angústias, pensamentos e dúvidas.

Diante de tal recorrência – e da inteligência do autor do folhetim, Aguinaldo Silva –, calculo que tal recurso é proposital.

Qualquer manual chinfrim de roteiro desaconselha o uso de “pessoas que contam a história em voz alta”. Além de diminuir o realismo da cena, incomoda o público pelo didatismo e por remeter a uma obra teatral – e denota preguiça do autor, convenhamos.

Sabemos que em algum momento qualquer pessoa tem o soberano direito de conversar com fantasmas e bancar o Chico Xavier. Mas como ter a santa paciência de acompanhar uma novela em que todo mundo fala sozinho? Pior: não são interjeições ou pequenos desabafos como “sujeitinho desgraçado”; a turma de Fina Estampa às vezes manda ver um Shakespeare completo, comentando o que pensam sobre determinado assunto, como vão realizar um plano mirabolante ou o que acham da vizinha mocréia.

O meio audiovisual vem se debatendo desde o começo do século passado com a questão da encenação das motivações psicológicas dos personagens. Tal questão foi bem resolvida pela literatura e, sobre o assunto, vale escrutinar o capítulo Breve História da Consciência, do livro Como Funciona a Ficção (Cosac Naify), de James Wood.

Mas graças aos recursos técnicos – edição, principalmente –, o cinema deu um passo em relação ao teatro ao conseguir detalhar de tal maneira a cena que imediatamente mergulhamos no pensamento da personagem.

O jeito de morder o lábio, um olhar, a imagem de uma arma sendo disparada logo depois do marido olhar com ódio para a mulher etc. formam o infinito cartel de possibilidades de contarmos uma história – inclusive somente mental – para o público de uma obra audiovisual.

Ou então, na ausência de um companheiro, um poste, um qualquer para relatar seu drama e fazer a história avançar, o personagem usa um cachorro, um objeto – vale tudo para não falar sozinho.

Steven Spielberg faz bastante isso nos primeiros minutos de As Aventuras de Tintim. Chega a ser irritante a forma contundente como Tintim relata todas as suas angústias para o cachorro Milu. Na verdade, o cachorro está ali para dar graça e deixar o “falando sozinho” mais simpático.

Na hora de escrever uma cena em que precisamos desconfiar que Fulano irá se rebelar contra alguém ou está planejando determinada situação, o roteirista dá dicas para a audiência. Porém dificilmente colocará no papel algo como: “Fulano fica sozinho e diz em voz alta: ‘Bom, então hoje é segunda-feira, lá vou eu trabalhar num lugar que detesto e encontrar Seu Pafúncio, meu chefe desde 1983 e pessoa irritante. Ainda me lembro como se fosse hoje quando ele jogou café quente nas minhas calças cargo”’. Chato, porque não fazemos isso. Ou melhor, fazemos às vezes.

Em Fina Estampa, eles fazem a todo instante. Por quê? Acredito que Aguinaldo Silva, um estudioso de roteiros, quis realizar uma novela limpa, claríssima, divertida e caricatural. Com suspense, mas não misteriosa. Com dramas, mas não dramática. Engraçada pela farsa e não pela crítica.

Portanto, nesse teatrão, o público observa a vida privada de cada um. Não há segredos para a platéia. Os personagens são servos da audiência, dizendo em voz alta suas motivações e desejos, como num espetáculo teatral convencional.

Claro que Aguinaldo aplica um ritmo intenso na sua narrativa. Muita coisa acontece em todos os capítulos. E essas mudanças são anunciadas via imprensa, via comercial e via personagens.

Cada personagem é o propagandista de si próprio. Ele mesmo anuncia: “vou pegar aquela megera!”.

Todas as novelas usam muito esse discurso narrativo (falar sozinho). Os motivos: é necessário reafirmar a intenção da ação, pois o público está disperso; são mais de duzentos capítulos de meia hora cada um, é complicado mergulhar profundamente nas intenções dos personagens numa única cena esplendidamente trabalhada; o ritmo da produção é insano, não permitindo milhares de sacadas visuais e uma direção criativa; muitas vezes o autor precisa encher lingüiça.

Porém, Aguinaldo Silva acrescenta mais um motivo. Num mundo cada vez mais gritado, anunciado, onde todos parecem estar vivendo em público, como numa novela, nada mais natural do que falar sozinho, como se estivéssemos diante de uma câmera/platéia.

Aguinaldo capta um novo realismo das novelas, onde ele assume que o mundo é enfim um roteiro de dramaturgia, em que somos personagens em busca de uma audiência.

Talvez as pessoas estejam cada vez mais falando sozinhas, esperando o diretor gritar “corta” e loucas para ver como foi a sua atuação no dia-a-dia.

 

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