No ano do centenário de Nelson Rodrigues, o YouTube nos oferece um grande filme sobre o dramaturgo brasileiro. Fragmentos de Dois Escritores, dirigido pelo comediógrafo João Bethencourt em 1968, traz o cotidiano do teatrólogo norte-americano Edward Albee e do pernambucarioca Nelson Rodrigues.
Reunindo entrevistas, passeios à beira do mar e palestras, o curta revela, como lembrou Ruy Castro, um Nelsão – aos 56 anos – mais serelepe, ativo, longe daquele soturno senhor de fala bovina – imagem consagrada pelos vídeos que restaram por aí.
Mas o interesse pelo pequeno documentário – encontrado pelo historiador Carlos Fico no Arquivo Nacional dos EUA – vai muito além do simples voyeurismo de espiar o maior dramaturgo brasileiro vestindo pijamas e tomando sua indefectível papinha; há, acima de tudo, um enorme estranhamento – e complexidade – visual quando acompanhamos lado a lado essas duas vidas.
As primeiras imagens de uma Nova Iorque marrom glacê, tomada pelo frio, refletem com precisão o off pesado, profundo de Albee. Autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf, Três Mulheres Altas e The Zoo-Story, ele se mostra um estudioso das pessoas, contando como tenta diariamente conversar com desconhecidos. Seus personagens passam pela câmera portando intransponíveis casacos e a lama se acumula nas ruas. Albee é o homem da pá, aquele que tem por missão cavar a superfície daqueles que passam.
Essa introdução do universo do norte-americano termina com um sino embalando uma paisagem deserta. Onde estarão as pessoas?
E então começamos um passeio pela orla carioca. O fúnebre toque é substituído pelo gingado do samba. A multidão aparece seminua, espalhada na areia, como se nada pudesse ficar escondido sob um sol tão provocativo.
Porém, a voz do dramaturgo, apesar de ser outra e em lugar festivo, carrega o mesmo tom sombrio. Nelson conta que deu uma “resposta fulminante” quando perguntaram o que ele queria ser: repórter de polícia (“que é uma espécie de Zola, Balzac”). Seu interesse é o mesmo de Albee: as histórias do homem.
Em cinco minutos, numa magnífica introdução, temos esse descortinar de dois universos; Albee terá de trazer à tona os dramas de uma sociedade desconfiada, que parece conservar uma certa reserva, onde toda a potência narrativa se encontra nas entrelinhas; Nelson mexe com algo explícito, escandaloso. Um cava; o outro fareja.
A idéia de ensaiar uma curta biografia dupla poderia ser aproveitada novamente pela TV e internet. Nossa percepção de cada autor cresce com a inevitável comparação feita por nós – mas jamais dita por alguma locução, e sim apenas sugerida pelo contraste.
Albee aparece elegante conversando com amigos bem vestidos e que carregam formosos copos de uísque. Parece que dali sairá o novo tema para uma de suas peças, tamanha a encenação. Depois o autor acompanha – até mesmo com certo enfado – um ensaio, despacha num escritório e realça o caráter profissional de sua existência.
Nelson surge longe de ser um privilegiado como Albee. Misturado numa multidão de repórteres, por ironia ele carrega um certo complexo de vira-lata. Fala sobre seus problemas econômicos (“qualquer ceguinho me engana”), batuca na máquina de escrever com dois dedos, repete frases emblemáticas e torna-se personagem de si mesmo.
Esse vai-e-vem transforma Albee num escritor compenetrado, ciente de sua arte (aliás, sempre cercado por arte) e gigantesco criador de universos. Livre, fala para um ginásio lotado e seduz com seu pensamento e tranqüilidade. Seu tema é o teatro.
Já Nelson Rodrigues atua melhor do que todas as suas crias. Tece palavras sempre definitivas e estrangula com desprezo o maço vazio de cigarros. Combativo, vive sob o olhar da censura – do governo e do público. Fala sobre política para um sala atenta e provocativa. Escreve fazendo das tripas coração. Seu tema é ele mesmo.
Temos ali um herói trágico, que se sacrifica em colunas de jornal e atividades mil. O brasileiro habita um lugar hostil, turbulento, em que o teatro (a arte) fica em segundo plano. Antes de escrever, é preciso comer. E Albee parece estar no futuro, num lugar quieto e plácido, onde a arte pode florescer em paz.
Nelson morreu em 1980 aos 68 anos. Albee, que nasceu em 1928, segue produzindo. Esquecendo a frase de Nelson, que dizia que “o morto esquecido é o único que realmente descansa em paz”, o vídeo de Bethencourt (morto em 2006) fornece mais um olhar sobre esse incansável personagem e propõe uma reflexão sobre o que é produzir arte no Brasil.
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