Sob o rótulo “homenagem ao cinema do passado”, O Artista e Hugo escondem pertinentes reflexões sobre a importância da arte – e até mesmo a imortalidade de uma delas, o cinema.
Quer dizer, escondem para alguns bobocas infantilizados que insistem em simplificar esses filmes e a safra cinematográfica do ano passado – ao contrário do que afirmam por aí, o Oscar deste ano está bem forte e digno.
Hugo, essa obra-prima de Martin Scorsese, tem um dos prólogos mais interessantes dos últimos anos. As primeiras imagens nos remetem a uma espécie de “chegada da câmera à estação”. Com um 3D orgânico (veja como nos sentimos intimidados por Sacha Baron Cohen quando ele pressiona o garoto e seu rosto quase cola com o nosso) e uma gigantesca profundidade de campo (algo que Scorsese adora), temos ali uma releitura do primeiro filme da história, dos irmãos Lumière, e uma genial apresentação de personagens, cada um com sua ação e peculiaridade.
Na superfície de Hugo, observamos a trajetória de um órfão, de um cineasta desiludido e do próprio cinema. Os três precisam encontrar o propósito de suas vidas: o menino tem que descobrir como seguir seu rumo depois da morte do pai; George deve se reinventar após perder seu sucesso; e o cinema precisa buscar soluções para entreter um mundo em crise, pós Primeira Guerra Mundial.
Tudo isso enquanto o tempo não pára. É uma corrida, sem dúvida, inventada pelo homem desde o instante em que ele resolveu fracionar sua existência.
Por um período, a engrenagem do relógio serviu de metáfora para o nosso corpo – e para nossa condição como peças desse mecanismo. Hoje, o computador tomou esse espaço. Assim, Scorsese fala sobre um século, o passado, em que o universo era visto como uma precisa engrenagem mecânica (Deus era o Grande Relojoeiro). Tanto que ali está o autômato, sonho de criação de uma espécie perfeita, capaz de responder as nossas mais íntimas perguntas (e que esconde a resposta para Hugo).
Porém, o cineasta aborda esse projeto de mundo com todos os recursos disponíveis da atual tecnologia, com os mais modernos avanços da computação. Hoje, Deus está nos chips e em placas criadas na Califórnia. Sai o Grande Relojoeiro e entra o Grande Programador.
Essa evolução tão bem retratada na tela (a história) e fora dela (os recursos que Scorsese utiliza) nos conduzem para a grande questão do filme: qual é o nosso propósito?
Em determinado momento, Hugo e Chloë Grace Moretz travam um esclarecedor e impactante diálogo (que acontece dentro da engrenagem, no topo do relógio mais visível). Eles discutem justamente qual é o propósito de cada um. E essa camada tão filosófica e questionadora permeia todo o entretenimento do filme, com suas homenagens, citações e complexas construções visuais.
Estão lá o prazer do cinema, as referências e momentos de tensão e humor (principalmente graças a brilhante escalação de Sacha Baron como o inspetor da estação). Mas, também, existe a dura busca pelo tal propósito. E talvez seja por isso que estamos aqui, parece afirmar Scorsese. Corremos contra o tempo para encontrar essa resposta (que muitas vezes pode ser uma eterna pergunta).
Sem estragar o final, o propósito de todos se encontra na arte – Hugo é também uma gratificante homenagem aos livros, música e arquitetura –, no amor e na dádiva. E temos novamente o quase-padre Scorsese fazendo sua bonita pregação cristã – e encontrando os coroinhas perfeitos nas figuras de Brian Selznick (autor do livro) e John Logan (roteirista).
Como mencionou o crítico Paulo Santos Lima, este é um dos raros filmes de Scorsese nos últimos anos com um final feliz. Talvez porque o próprio diretor tenha encontrado o seu propósito: fazer cinema. Sem se importar com sucesso, reconhecimento, certezas, o homem só se realiza quando sabe o que deve fazer por aqui, seja participando – com senso de justiça – de uma engrenagem ou inventando uma delas.

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