A velha e boa poesia familiar

O romance epistolar sofreu sua derrocada ainda no século XIX. Com a invenção do telefone, os grandes dramas e as mais incríveis farsas relatadas por cartas perderam o interesse.

Como lembra David Lodge em seu esclarecedor A Arte da Ficção (L&PM Editores, tradução de Guilherme da Silva Braga), mesmo com toda a tecnologia empurrando o envio de missivas para o buraco, o gênero ainda sobrevive como relíquia e às vezes aparece em alguma história contemporânea mais peculiar.

O fax, de vida tão efêmera quanto uma mosca, parecia uma esperança para a troca de correspondências em papel. Mas os computadores não perdoaram nem aqueles simpáticos dinossauros que engoliam e cuspiam papéis.

De maneira geral, falar em cartas é sempre se relacionar com o passado.

O que dizer então quando temos cartas e poesia num único livro? Pois os versos também hoje parecem carregados de naftalina – e não por culpa dos poetas. Mas o público não demonstra mais tanto interesse pela complexa e profunda linguagem do poema – assim como não quer saber de tantas outras coisas melhores ou piores que a poesia.

Falar em “o poeta” é quase invocar um senhor de terno, cravo na lapela, chapéu esquisito e uma oratória que cospe ridícula pompa.

Aí aparece um livro como Negócio de Família, que reúne cartas entre dois poetas, pai e filho. Allen Ginsberg, o filho, foi cabeça-de-chave da geração beat. Louis Ginsberg, o pai, penou para publicar seus poemas e se tornou um repeitável professor. A troca de correspondências entro os dois é um belo registro de “não ficção epistolar”.

Então esse papo de “coisa ultrapassada” não cola. O que é dito ali ainda reverbera, empolga e nos deixa perplexos. Cartas e poesia, se transmitirem algum tipo de verdade, são gêneros infindáveis e incrivelmente frescos.

Abaixo, resenha do livro publicada na edição número 66 da revista Rolling Stone.

*

Nem faz tanto tempo assim, a poesia fermentava multidões.

O norte-americano Allen Ginsberg (1926-1997) foi um dos responsáveis por colocar – pelo menos por um período – o poeta novamente na praça, discutindo amor, revolução e política.

Autor de Uivo e Outros Poemas (1956), ele fez parte da geração beat, que reuniu escritores em torno de um novo modo de fazer literatura – experimental, contra o conformismo, livre, tentando acompanhar o fluxo do pensamento.

Filho do professor e poeta lírico Louis Ginsberg (1895-1976), Allen – juntamente com Jack Kerouac, William Burroughs e outros – influenciou o pensamento da contracultura norte-americana nos anos 50 e 60.

Editadas em livro pelo pesquisador Michael Schumacher (também autor de Dharma Lion, biografia de Allen), as cartas trocadas entre pai e filho fornecem um abrangente panorama de quatro décadas (de 1944 a 1976) da história política e cultural dos Estados Unidos e revelam as angústias de um artista crucial para o século 20.

Negócio de Família também traz esclarecedores prefácios e notas – do próprio Schumacher – e missivas de grande sinceridade e respeito mútuo, com Allen contando, mesmo indiretamente, sobre sua homossexualidade, escancarando as experiências que teve com LSD (“fiquei deitado, ouvindo música e entrei numa espécie de estado de transe”) e recebendo conselhos do pai (“tente não se embebedar”).

Mesmo com discordâncias em todos os níveis, os dois poetas tinham uma profunda amizade e uma missão em comum: nas palavras de Louis, ambos almejavam “extrair uma conscientização maior, um entendimento mais profundo e um prazer mais abundante do esplêndido fenômeno da vida”.

 

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑