Mercenários: (d)a crítica

É mais um daqueles interessantes fenômenos: um filme ruim poderia render mais críticas e pensamentos do que um bom. Mercenários 2, de Simon West, nem chega a ser um filme – parece mais um sintoma.

A estranha admissão do título “mercenários” sugere uma autopiada: pois os atores estão ali também apenas pelo dinheiro – ou não? Afinal, por que um filme como esse existe? Não há qualquer espasmo de inteligência cinematográfica em sua história ou condução; portanto, toda a explicação “artística” já está encravada no nome da película.

Mercenários 2 existe porque alguém paga para esses renegados entrarem em ação – mesmo que a tarefa seja imbecil. Só isso. Sem trama complexa, personagens intrigantes ou cenas memoráveis.

E por quê? Aí está a chave do negócio. O que eu gostaria de saber é qual a função desse tipo de filme no nosso imaginário – e não o frio número de quantas mortes eles propiciam ou se tem uma ou duas estrelinhas no jornal.

O que Mercenários 2 diz não como filme, mas como produto?

O que poderia ser discutido é como Sylvester Stallone, Jason Statham, Schwarzenegger, Bruce Willis, Jet Li, Chuck Norris, Van Damme e mais meia dúzia de brucutus se juntam para dizimar milhares de pessoas sem rostos, mas com gênero (masculino) e nacionalidades (quase todos asiáticos e europeus). O que move essa catarse, essa raiva contra aquele que não é igual aos personagens principais?

Até o meio da história, o sacrifício indiscriminado de outros seres humanos rola devido a uma imensa carga de plutônio – o que poderia desestruturar a política mundial. Um propósito, vá lá, justo. Mas, quando um ex-soldado norte-americano é morto, a questão muda para o patamar da vingança, do troco. Nunca mexa com um deles, molecada!

Há dois momentos estarrecedores que nos levam para a total banalização da violência – e, claro, da morte. São dois diálogos surpreendentes. Um, dramático, conta como o ex-soldado saiu da corporação; a gota d’água não foi a morte de seus amigos, mas sim quando matam um cachorro – os animais merecem mais respeito, é isso?

O outro, irônico, faz troça de uma carnificina; Stallone e seus comparsas aplicam tantos tiros num pobre sujeito, que seu corpo vira uma paçoca. Stallone – eu acho – proclama: “rest in pieces” (descanse em pedaços), fazendo um trocadilho com “rest in peace” (descanse em paz). Todos riem. Estamos na seara da piada, do esfacelamento, do fim do indivíduo e da paz. Não à toa, o único que tem um enterro decente e a morte de fato chorada e sentida é o soldado. Todos os outros vão para a vala comum do esquecimento, estraçalhados por balas, como se fossem Bin Ladens sem grana.

É cada um por si e não há Deus para ninguém (aqui, como no primeiro, uma igreja é usada como local de conchavo e violência). O Estado também está falido – tanto que numa boa cena eles se proclamam sem pátria – e só a  “família/gangue” (grupo de amigos) é confiável.

E tem mais assunto bacana. Sem contar o saudosismo, dos “bons tempos da Guerra Fria”, quando os personagens curtem uma cidade norte-americana de fantasia, parada no tempo. E como interpretar a presença de Chuck Norris fazendo um esquete sobre sua personalidade propagada na Internet? E o fetiche com facas e objetos de tortura?

Essas coisas passam incólumes pela maioria da crítica dos jornalões. E a plateia vibra e comenta nas redes sociais. E ninguém quer saber de mais nada, se Mercenários 2 é o sintoma de algo ruim que está no ar, um filme, ou qualquer outra coisa.

Bom, talvez seja nada mesmo.

Então vamos para o artigo de Daniel Mendelsohn, no blog da New Yorker. Peguei a dica do Todoprosa, do Sérgio Rodrigues.

Mendelsohn, em um artigo brilhante e emocionante (aqui), defende a crítica, propondo uma equação (sensibilidade + expertise = avaliação consistente) que sempre balizou os excelentes ensaios de nossos críticos preferidos.

Mas quem tem críticos preferidos aqui no Brasil? Cadê aqueles jovens que gostariam de ser críticos no futuro?

Difícil ler alguma reflexão relevante nos moldes propostos por Mendelsohn por essas terras. Pior, a própria grande imprensa parece ter desistido dos críticos – ou eles mesmos desistiram da crítica?

Enquanto isso, as redes foram tomadas por resenhistas, blogueiros, tuiteiros e muitos mercenários da crítica. Alguns honestos, na verdade, mas longe de poderem ser chamados de críticos – e, pior, vários recebem troco para elogiar alguém ou ainda tentam causar polêmica para virar astro do Facebook.

A coisa está feia.

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