“Na cozinha, ele se serviu de mais um drinque e olhou para a mobília do quarto no jardim da frente.” Esta é a primeira frase/imagem do conto “Por que Não Dançam?” de Raymond Carver.
Dan Rush fez um filme (Everything Must Go) baseado nesse texto. Na versão em português encontrada no precioso 68 Contos de Raymond Carver (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo), o conto tem seis páginas.
No longa (com uma hora e meia), o sujeito que está colocando bebida num copo é o Will Ferrell. A mobília no jardim também está lá, intrigando os moradores de uma rua de subúrbio norte-americano.
E só. Todo o resto é diferente. No livro, ficamos concentrados num único encontro, quando o dono dos móveis confraterniza com um jovem casal que aparece para tentar comprar aquelas tralhas. No filme, acompanhamos por alguns dias a história desse sujeito de meia-idade que vive do lado de fora de sua casa. Por quê?
Eis um exercício fácil, prático e rápido, ideal para todos aqueles que pretendem aprender a escrever roteiros, mas não têm tempo – ou saco – para ler manuais, enredos, bons livros, ver os clássicos etc. Bom, esses nunca vão escrever nada que preste, mas o exercício é válido mesmo assim.
Leiam o conto de Carver e depois decupem o filme. Observem como Dan Rush partiu de uma imagem fortíssima (a mobília no jardim) para construir todas as motivações, passado e presente de um personagem (o proprietário daquela cena inusitada).
Everything Must Go é um filme de baixo orçamento, com um elenco impecável (Ferrell é um tremendo ator e Rebecca Hall tem a doçura correta) e interessantes pontos de contato com o estado atual do mundo: o desemprego, a falta de privacidade, a confusão do indivíduo, os vícios etc.
Alcoólatra até os 40 anos, Raymond Carver foi um dos grandes escritores norte-americanos da segunda metade do século passado. Muitos dos seus contos conseguem despertar essa centelha de criatividade, essa angústia, essa vontade de discutir a cena e produzir mais coisas a partir de suas ideias – então, vale a pena ler o livro todo, ou mais alguns contos, pelo menos.
Essas coisas todas apareceram pra mim porque o Inácio Araújo – o melhor crítico do país – escreveu outro dia em seu blog (aqui) parte do que ele apreendeu de uma conversa com o diretor e roteirista Paul Schrader.
Este foi o parágrafo que me chamou a atenção: “E, em vez desses orçamentos cavalares que o cinema brasileiro agora desenvolve, usa-se [produção independente norte-americana] imaginação, talento e desejo. Muito desejo de ver algo em tela”.
E então consigo entender a problemática dos filmes brasileiros e essa eterna reclamação de falta de grana (para esses caras sem tesão, a culpa sempre é do dinheiro e do Estado, sempre).
Antes os filmes não eram bons por causa da falta de técnica, do som, das câmeras capengas. Depois, arranjaram equipamento, mas faltava roteiro. Aí, conseguiram roteiro, mas o público não aparecia. De repente, o público apareceu um tanto. E agora? Falta desejo.
O pessoal quer colocar um filme na tela para arrecadar money ou fazer o nome para seguir carreira em Hollywood. Mas cadê o tesão de fazer filmes?
A gente olha três minutos de alguns longas nacionais e já desanima, tamanha falta de tesão do diretor, roteirista, elenco etc.
Tem que ter vontade. Tem que olhar um conto do Carver e falar: “cacete, quero filmar essa história!”.

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