“Hoje, quando podemos comer Tex-Mex com hashi enquanto ouvimos reggae e assistimos a uma retransmissão da queda do Muro de Berlim no YouTube – ou seja, quando praticamente qualquer coisa se apresenta como familiar –, não é de admirar que algumas das obras mais ambiciosas da atualidade sejam uma tentativa de fazer o familiar parecer estranho.”
A citação acima é de um trecho do ensaio “O êxtase da influência: um plágio”, de Jonathan Lethem, traduzido para o português por Alexandre Barbosa de Souza e Bruno Costa e publicado na revista Serrote # 12.
Ainda não sei bem os motivos, mas durante toda a leitura (muito prazerosa) do artigo, eu me recordava de Um Alguém Apaixonado, o filme mais recente de Abbas Kiarostami.
Claro, a situação não foi completamente estranha porque tinha visto o filme dias antes e também porque a obra anterior de Abbas, Cópia Fiel, toca em muitos dos pontos levantados por Lethem (o que é ser original, dádiva, economia de mercado etc.).
Para completar o caldo, comecei a ler o romance 1Q84, de Haruki Murakami, e Kiarostami novamente paira sobre tudo, pois o livro é no Japão e também trabalha com essa realidade furtiva, esgarçada, que sempre se apresenta de um jeito, mas pode muito bem ser outra coisa.
Mas pensemos sobre Um Alguém Apaixonado, apenas.
O espectador dos filmes de Abbas Kiarostami nunca é um preguiçoso, porque ou ele se assume coautor ou sai do cinema indignado.
Estamos num filme sem início e sem final. Ou antes: talvez o final e o início incumbam a nós, coautores, descobrir. O que duplica o prazer de estar com essas belas imagens.
Este é o seu segundo filme seguido rodado fora do Irã. Cópia Fiel foi feito na Itália, com elenco italiano e francês. Um Alguém Apaixonado – tradução brasileira ruim para o título original, Like Someone in Love, referência à canção de Jimmy van Heusen e Johnny Burke, um entre vários standards do jazz desfilados na trilha sonora – é ambientado no Japão, falado em japonês e com atores locais.
A narrativa, concentrada em 24 horas, transcorre em Tóquio e seus arredores. Em linhas gerais – e as linhas gerais são muito traiçoeiras, em se tratando de Kiarostami – descreve-se o encontro improvável entre uma garota de programa recém-saída da adolescência (Rin Takanashi) e um velho tradutor e professor aposentado (Tadahi Okino).
Há, em Kiarostami, como nos japoneses, esse inacreditável domínio do tempo, encontrado apenas nos mestres – Manoel de Oliveira, Raúl Ruiz, gente assim, que se conta nos dedos de uma só mão. Pensamos que às vezes Kiarostami está perdendo tempo, mas ele está contando a história em suas minúcias.
Não existe no mundo um cinema mais físico, substantivo, imanente, do que o seu. Aqui, como em todos os seus filmes, respiramos a atmosfera, sentimos a textura e a vibração dos ambientes: um bar, um apartamento atulhado de livros, um automóvel em movimento, uma oficina mecânica. Cada personagem tem tempo e espaço para se mostrar como é e como se apresenta para o mundo.
Se um personagem tem sete mensagens em seu celular, ele faz com que ouçamos as sete, sem elipses, para sentirmos o dilema em que ele se encontra. Uma trivial conversa em torno de uma correia de motor de automóvel pode significar a aproximação ilusória entre dois personagens. E assim por diante.
Um Alguém Apaixonado é obra de mestre, de um dos poucos mestres consumados ainda em atividade no cinema. E Kiarostami é o artista que melhor responde ao mundo de hoje, às questões contemporâneas.
CÓPIA FIEL
Para ser fiel ao espírito livre e tentar explicar o artigo de Jonathan Lethem, quase toda essa coluna foi retirada de outros autores. Assim, aqui também nada é o que parece, mas tudo é real.
Eu editei uma ou outra palavra, retirei certa redundância, mas mantive o conceito original de cada frase copiada.
A própria citação que abre esse texto foi saqueada de Lethem, que copiou de David Foster Wallace (leiam o ensaio na Serrote, por favor).
Os primeiros cinco parágrafos são meus.
De “O espectador dos filmes” até “belas imagens” são de Inácio Araújo.
De “Este é o seu segundo filme” até “com atores locais” são de Luiz Zanin Oricchio. Porém, o aposto que fala sobre a tradução do título do filme e as referências ao jazz são de José Geraldo Couto.
De “A narrativa, concentrada em 24 horas” até “professor aposentado” são de José Geraldo Couto.
De “Há, em Kiarostami, como nos japoneses” até “em suas minúcias” são de Zanin.
De “Não existe no mundo” até “como se apresenta para o mundo” também são de José Geraldo Couto.
De “Se um personagem tem” até “atividade no cinema” são novamente do Zanin – não editei, apesar de achar que eram nove mensagens.
A frase final é de Inácio Araújo.
A foto foi retirada do site do IMS e o vídeo abaixo, do YouTube.
