“Suburbia” busca a realidade dos anos 90

A gente sabe como é uma cidadezinha norte-americana dos anos 70. Conhecemos Paris de todas as épocas. Podemos dar detalhes do Coliseu em pleno funcionamento, com seus gladiadores soltos na arena.

Por causa do cinema e da TV, nosso imaginário foi modificado e consolidado no último século. Assim, também conhecemos “a realidade” de tempos e lugares que nunca vimos. Acreditamos naquilo, apesar de som e imagem serem meros chutes (ninguém consegue reproduzir o som da Idade Média, por exemplo).

Portanto, temos uma referência sobre o mundo baseada nas imagens em movimento. Mas, e quando não há esse espelho? Ou seja, e quando nossa mente não está embotada de cenas de um tempo? Quando temos que puxar pela memória e não conseguimos comparar com filmes sobre o período?

O que acontece com um povo que não tem cinema com sua história recente?

Suburbia, o novo projeto de Luiz Fernando Carvalho, vem carregado dessas perguntas.

As primeiras imagens da estreia mostraram a heroína Conceição numa carvoaria, lugar capaz de tingir de breu sua face já escura. Em tom de fábula, a pequena mocinha montou num trem e foi buscar alguma esperança no Pão de Açúcar – que ela sabia que existia graças a uma foto numa revista.

Quem conhece a luz de Adrian Teijido (diretor de fotografia de muitos trabalhos de Luiz Fernando) e a paixão pelo barroco do autor de Suburbia, naturalmente se instalou no projeto de imagem proposto – saudado anteriormente em Hoje É Dia de Maria ou A Pedra do Reino. O ambiente saturado de cor (ou, no caso da carvoaria, saturado de “ausência de cor”, já que o preto dominou) e o controle lúdico das cenas prometiam nos levar para uma continuação das ideias de Luiz Fernando.

Porém, logo a menina Conceição chega ao Rio de Janeiro, se envolve com a polícia, é presa e cresce. Essa passagem se estabelece de maneira crua, com corpos escandalosamente reais tomando banho num reformatório e a sugestão de bastante violência física.

Não estamos mais nos domínios da fábula. Quando Conceição vira mulher, Suburbia pretende ser real.

A câmera está geralmente colada aos corpos, como se fosse mesmo um respingo de suor dos personagens, como se fizesse parte da constituição corpórea de cada um. Os diálogos tentam ser conversas. As situações beiram o “não acontecimento”, a tal “vida sem roteiro”.

Estamos no início da década de 90, em Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro. Há o confisco da poupança durante o governo Collor e outras dicas reais, realçando a nova proposta. Não há dúvidas. Luiz Fernando abandonou seu universo lúdico e mergulhou no real – coisa que ele fez questão de afirmar em entrevistas.

Mas, qual é a imagem real dos anos 90? Ou ainda: qual é a imagem cinematograficamente real dos anos 90? Não sabemos.

Os pretos usam cabeleira black power e se movem com um gingado do blaxploitation. Nas cenas, observamos fuscas e mulheres brancas usando lenços na cabeça, uma coisa meio oitentista. Mas os anos 90 eram assim?

E o ruído se faz. Porque nos anos 90 não tivemos cinema suficiente para demarcar o Brasil, não tivemos imagens cinematográficas que povoaram nossa mente. Então, como conseguimos nos transportar para “o real”?

Claro, produziram filmes naquele período, mas ninguém viu. Não custa lembrar que em 1988, o Brasil teve 28 produções nacionais lançadas no circuito, com uma participação de 22% do mercado de ingressos; em 1992, após os três anos de Collor, foram 3 filmes lançados, com 0,05% de participação. Uma queda violenta e repentina. A toada foi essa durante toda a década, com um expressivo aumento de lançamentos, mas pífia participação no mercado. Perdemos nossa imagem nas telas.

Portanto, não temos na lembrança imagens cinematográficas sobre os anos 90. Lembramos de novelas, seriados, telejornais etc., mas nenhum blockbuster nos cinemas, nenhum Cidade de Deus, Tropa de Elite, Se Eu Fosse Você, filmes que poderiam nos resumir o conceito de um período. Não temos filmes sobre o embate Lula e Collor; o confisco da poupança; os caras-pintadas; etc. Simplesmente deixamos de existir.

Ao mexer com essa época, Luiz Fernando Carvalho, Paulo Lins (co-roteirista da série), Adrian Teijido, cenógrafos, atores, enfim, todos os envolvidos em Suburbia colaboram para criar um imaginário visual sobre o período.

Paradoxalmente, Luiz Fernando diz que pretende ser real, mas está inventando um “anos 90” para todos nós.

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