“Salve Jorge” x “Av. Brasil”: mudança de hábito

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Até o Sílvio Santos – chegado numa loucura na hora de fazer a programação do SBT – sabe que televisão é hábito. Hoje, talvez só alguns bispos da Record duvidem dessa história, pois estão fazendo uma confusão danada com aquela grade da Igreja na TV.

A turma do Boni (olha só, que bom título para um show infantil) ficou com a fama – justíssima – de inventar diversos hábitos do brasileiro. Graças ao poderio da Globo, nossos cérebros sabem que hora de notícia “de verdade” é a partir das oito e pouco; novela e lá pelas nove; e para dar risada, o negócio é ligar o plasma depois das dez.

Feito ratinho de laboratório – ou aqueles simpáticos macacos –, a gente entrou nesse loop televisivo (a maioria da população, pelo menos). Só que às vezes os programas são tão miseráveis que parecemos mais cobaias de “laborotários”.

Como mostra o jornalista Charles Duhigg no interessante O Poder do Hábito (Objetiva, tradução de Rafael Mantovani), esses loops não são necessariamente ruins. Nossa existência precisa de hábitos.

Seja para escovar os dentes, dirigir um carro ou iniciar uma dieta, o sistema cerebral formata certos caminhos e padrões que facilitam a nossa vida. Enquanto a gente realiza alguma tarefa ultraconhecida, podemos liberar o resto da mente para coisas mais importantes – ou não, como conversar ao celular enquanto guiamos, tuitar diante da TV ligada, etc.

A coisa é tão séria, que um artigo publicado em 2006 por um professor da Duke University apontava que “40% das ações que as pessoas realizavam todos os dias não eram decisões de fato, mas sim hábitos”.

Como isso funciona? O loop do hábito segue uma fórmula simples, porém engenhosa. Ele, o loop, necessita de uma deixa (dentes sujos), uma rotina (escovar os dentes) e uma recompensa (dentes mais limpos e bonitos). Pronto. Mais ou menos. Há também a necessidade de se criar um anseio (vontade de escovar os dentes para ter a sensação de limpeza) ou o loop não anda.

Até aí, ok. Claro que os vícios (alcoolismo, tabagismo, comer demais) dependem de hábitos e também de outras reações químicas – e, talvez, até da genética. Mas Bill Wilson, por exemplo, fundador do A.A. (Alcoólicos Anônimos), criou um método de sucesso apostando primordialmente na mudança de hábito em relação ao consumo de álcool.

Segundo Duhigg, “o A.A. dá certo porque ajuda os alcoólatras a usarem as mesmas deixas e receberem as mesmas recompensas, mas ele altera a rotina”.

Assim, a bebida é substituída pelo companheirismo. A deixa é sempre a mesma: busca por alívio; a recompensa também: ficar aliviado. Porém, a rotina é que muda. Em vez de saciar essa ansiedade nos drinques, ele topa com um amigo nas reuniões do grupo.

“Para oferecer aos alcoólatras as mesmas recompensas que obtêm num bar, o A.A. montou um sistema de encontros e companheirismo – o ‘padrinho’ com quem cada membro trabalha – que se esforça para oferecer tanta fuga, distração e catarse quanto um porre de sexta-feira à noite”, escreve Duhigg.

Finalmente volto para a TV e arrisco um pensamento (na verdade, quase uma paródia de um artigo do Hélio Schwartsman): a Globo perdeu uma grande oportunidade de mudar o hábito de milhares de pessoas – e ainda viciar umas tantas almas fresquinhas.

Isso porque ela não aproveitou o sucesso de Avenida Brasil para transformar de vez a rotina dos telespectadores.

Como assim? Vamos pensar que as últimas novelas das nove da noite eram bebidas alcoólicas de péssima qualidade. Ofereciam alívio, certa alegria, mas davam uma ressaca danada (um hábito ruim, enfim).

Avenida Brasil foi uma alteração na rotina, pois apareceu com uma trama bem construída, elevou o padrão de direção do canal e ofereceu ganchos e interesse para movimentar grande parte do país – ou seja, um uísque de primeira, que satisfazia com uma dose (um hábito até saudável, enfim).

O enredo de João Emanuel Carneiro fez o mais difícil: conseguiu mudar a rotina da audiência. A deixa era a mesma: o horário das nove e pouco; a recompensa também: um descanso do dia árduo, um pouco de diversão no fim de noite. Mas a rotina foi completamente outra.

Começamos a entender sobre furos na história, métodos de interpretação, entramos em outro universo. Passamos a cobrar inteligência da TV!

Por alguns meses, o hábito do brasileiro mudou. Ele passou a ver a novela com outro olhar, mais crítico, mais interessado, mais empolgado, mais participativo.

A Globo perdeu a oportunidade de fazer uma Avenida Brasil 2, de arriscar, de ousar. O brasileiro estava pronto para mergulhar em outra estrutura mais dinâmica, contemporânea – ele já tinha alterado a rotina.

E então o que aconteceu? A Globo voltou para Glória Perez, para a velha rotina, para essa bebidinha de quinta.

Com isso, quem estava se habituando com o novo loop voltou a cuidar da vida. E aquele que está preso nesse velho hábito, reclama, chia e fica novamente de ressaca.

Salve Jorge é um verdadeiro desastre cerebral, pois faz a turma voltar para uma rotina decadente e sem futuro.

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