Faz algum tempo que tentam salvar o cinema. A paranoia da morte das salas vem desde o advento da TV, pelo menos. De quando em quando, cassandras escrevem sobre nefastas criaturas (videocassete, aparelho de DVD, internet) capazes de destruírem qualquer vestígio dessa comunhão, desse prazeroso ato que é ver um filme em público.
Mas ele resiste. Criam armas tecnológicas para o coitado sobreviver, como desengonçados óculos 3D, sistemas de som com a capacidade de importunarem alguém na Lua, poltronas do tamanho de uma casa pequena, serviço de garçons oferecendo pipocas trufadas e todo o tipo de artimanha que aproxime a arte de um produto.
Dá resultado? Por um tempo, sim. Mas na sociedade capitalista – parece que li alguma coisa assim nos livros –, há o fetiche, o eterno desejo por mais e mais. Então, quanto mais criam produtos para a gente consumir nos cinemas, mais novidades queremos. Como o planeta, essa estratégia um dia chega ao fim.
Aí aparece Holy Motors, essa obra prima esquisita do Leos Carax, e entendemos que só o cinema consegue salvar o cinema. Podem inventar uma tela do tamanho do Maracanã. Mandarem a gente assistir aos filmes por qualquer motivo – quase nunca são os filmes em si. Podem tentar esvaziar ao máximo o significado das imagens. Mas sempre vão existir coisas como Holy Motors para nos lembrarem que o cinema é muito mais.
A gente vai ao cinema, pasmem, por causa dos filmes!
Não vou ficar aqui deitando elogios sobre Holy Motors – até porque nem sei por onde começar. Acho que há dois artigos bem interessantes que tocam na essência do longa. O primeiro é da jornalista e escritora Eliane Brum, num pequeno ensaio pessoal interessantíssimo, dando conta da experiência – bem particular – que é acompanhar essa ousadia de Carax (leia aqui).
O outro está na revista Bravo! de dezembro, com o Gilberto Gil na capa. Escrito pelo crítico Paulo Santos Lima, o artigo (fechado para assinantes na internet, então comprem em papel) tece uma interessante visão sobre os conceitos cinematográficos explorados em Holy Motors.
Pra aguçar um tanto os neurônios e tocar no assunto que mais me interessa, há um excelente debate na página do New York Times especificamente sobre a narrativa do filme.
Numa boa pauta (por que não copiam essas coisas por aqui?), reuniram os dois principais críticos do jornal, Manohla Dargis e A.O. Scott, para discutirem sobre alguns filmes contemporâneos que estão explodindo o jeito de contar uma história.
Partindo de Holy Motors (o exemplo mais radical), Cloud Atlas, Anna Karenina, Life of Pi e The Master, eles conseguem mostrar como estamos vivendo tempos curiosos quando o assunto é a narrativa – Holy Motors seria uma espécie de “mind-game film”, segundo teorias de Thomas Elsaesser (mais aqui).
Seja para xingar (como relata Eliane Brum) ou para se sentir inebriado com “o melhor filme do ano, de cair para trás” (como me contou Paulo Santos Lima), a obra de Leos Carax tenta nos tirar do torpor do consumo. Ela nos chama para participar de algo. É uma tentativa, que às vezes pode falhar, claro.
Mas Leos Carax coloca o cinema em movimento. Ou melhor, mostra que o cinema ainda pode se mover.
Num trecho do livro de entrevistas de Hitckcock com Truffaut (Companhia das Letras, tradução de Roda Freire D’Aguiar), o diretor inglês diz que “as sequências de um filme jamais devem ficar se arrastando, mas devem sempre ir adiante, tal qual um trem que avança roda após roda, ou, mais exatamente, como um trem de cremalheira que escala a estrada de ferro na montanha dente após dente”.
Não há trens em Holy Motors – destacados, pelo menos. Porém existe uma limusine que conduz toda a trama. Um carro enorme, gananciosamente individualista, que toma o espaço público para a privacidade de um indivíduo.
Talvez o cinema hoje não seja mais como um trem (que também foi a imagem inaugural das telas), capaz de carregar multidões, seguir invadindo nosso imaginário, ser o símbolo do progresso. Hoje, pode ser mais como uma limusine, levando alguém que ainda acredita na beleza do gesto.
Um carrão imponente, mas que já apresenta certa decadência, que está com os dias contados. Mas o que importa é que ele ainda está em movimento. E mesmo cansado, no final, está vivo.

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