O amor não é para maricas

amour

“Old age ain’t no place for sissies.” Em tradução livre: a velhice não é lugar para maricas. Com essa frase que Bette Davis teria dito, Roger Ebert abre sua crítica sobre Amour, o filme do austríaco Michael Haneke que desponta como favorito ao Oscar de língua estrangeira – a obra ainda está indicada nas categorias melhor filme, roteiro, direção e atriz.

A boutade de Bette Davis de fato se encaixa com perfeição no longa que narra a história de um casal octogenário encarcerado num elegante apartamento em Paris. Os dois (Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva) precisam lidar com as desventuras da velhice e compreender qual é o limite do corpo humano.

Há bastante do bonito cinema de Haneke aflorando por todas as partes. Com uma filmografia pequena – ele tem 70 anos e 13 filmes -, é fácil identificar algumas obsessões e temas recorrentes, como a violência física (seja por doença ou por motivos banais) e a música (queria ser pianista quando criança).

Parafraseando Bette Davis, Haneke parece dizer que “o amor também não é lugar para maricas”. Durante suas duas horas e pouco, o filme nos conduz para um dilacerante e sublime confronto entre vida e morte, com todos os rounds sendo mediados pelo Amor.

Em cada sequência, Amour carrega todo seu amplo aspecto, sua energia para falar sobre o amor, a vida, a morte, a arte e o companheirismo (e uma rara possibilidade de se identificar e encantar com qualquer um dos dois protagonistas).

Esse casal enganou a morte o quanto foi possível (aliás, a arte é um bom jeito de enganarmos a morte) e agora se permite um último embate.

Amar não é lugar para os maricas. Amar exige dedicação, compreensão, sacrifício e outros tantos sentimentos que só descobrimos tentando.

Li por aí que o filme mostra que amar é uma prisão. Mas, para mim, Amour é justamente ao contrário. Ele nos força a encarar a liberdade do amor. Sem o outro, sem esse sentinento, nossa passagem por aqui é incompleta.

Com uma narrativa concisa e muito bem construída, esse impactante e perturbador ensaio sobre o fim nos traz mais do que dor ou revolta. Ele consegue nos jogar para a assustadora felicidade que a vida – e o amor – nos traz.

É com pesar que partimos desse mundo, mas não deixamos de sentir um imenso prazer por ter vivido nele.

Numa das cenas mais marcantes – num filme repleto delas -, Emmanuelle Riva, já apresentando graves sinais de sua decadência física, revê um antigo álbum de fotografias. Seu marido acompanha com curiosidade a ação. “Por que a mulher se tortura assim? O que ela quer buscar no passado?”, muitos semblantes na plateia murmuram.

Porém, contrariando nossas expectativas por lamúrias, ela fala sobre a beleza que é a vida. Ela está agradecendo – e não lamentando. Ela teve a oportunidade de se debruçar sobre a arte e o amor durante oito décadas. Pode existir maior felicidade do que essa?

Haneke mostra isso praticamente num único cenário (há pouquíssimas sequências fora do apartamento) e com dois atores. Mas seu roteiro é preciso e muito engenhoso, com cenas inesquecíveis (a do pombo) e uma das melhores do cinema recente (quando o homem conta a história de sua aventura num acampamento). Tudo sempre respeitando regras da dramaturgia, construindo um curioso flashback e colocando uma respeitável agilidade em sequências que poderiam soar repetitivas (o protagonista em determinando momento conta algumas cenas e diz que não vale a pena vê-las).

Cloud Atlas, de Tom Tykwer, Andy e Lana Wachowski, é, cinematograficamente, o contrário de Amour. Ele é ambicioso, frenético, com cenas em diversos tempos e locais do planeta (e de outros, também), dezenas de personagens e histórias. Mas também fala sobre o amor e violência. Também mostra que amar é para os fortes. Também fica tecendo considerações sobre esse fio invisível que liga todos nós.

Nesse épico por vezes encantador, só o amor nos leva para a luta pela sobrevivência (no mar, na Terra, no presente, no futuro).

Estamos diante de bastante luta e dilemas. Pode ser viagem, mas que os dois filmes se tocam em muitos pontos, parece até óbvio.

Em ambos existe esse encanto pela narrativa, pela arte e, claro, a música. É a sinfonia Cloud Atlas que rege todas as conquistas amorosas (assim como Schubert pontua os movimentos do casal em Amour); existe essa insondável ligação fraterna e eterna entre casais; e há muita dor e sacrifício.

Porém, a visão baseada no livro de David Mitchell é portentosa, espalhafatosa, quase deselegante em certos trechos – apesar que o trabalho de edição é um dos mais interessantes da atualidade (voltarei ao tema em breve).

Mesmo assim, de maneiras tão distintas, Cloud Atlas e Amour parecem nos mostrar a mesma coisa: é impossível ser feliz sozinho.

2012, LOVE; AMOUR

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