O Lado Bom da Vida (livro de Matthew Quick e filme de David O. Russell) é imperdível para quem gosta de comparar narrativas e se interessa por roteiros. Para os outros mortais, sei lá. Eu recomendaria ficar apenas com o trabalho em papel, que é bem urdido, engraçado e com diversas reviravoltas. O objeto cinematográfico me parece esquemático e capenga – mas tem um elenco dos mais interessantes, que você obviamente não encontra na livraria.
Só que eu teria que rever o filme para ser mais categórico. Confesso que fiquei meio atordoado na sessão (e não foi por causa dos trajes sumários da Jennifer Lawrence – apesar de me deixarem desconcertado na dança final). Mas fiquei todo o tempo identificando as mudanças em relação ao livro, tentando fazer comparações e buscando os motivos de tantas – e são muitas, podem acreditar – alterações. Então, nesse árduo processo, meu envolvimento foi para a cucuia.
Um breve parágrafo para lembramos da sinopse da obra: Pat Solitano (Bradley Cooper) acaba de sair de um instituto onde estava internado por causa de grave crise bipolar. Ele volta para casa, que divide com o pai (Robert De Niro), um apostador inveterado e fã dos Eagles, e a mãe (Jacki Weaver), uma sentimental dona-de-casa. Pat tenta retomar suas atividades como professor e reconquistar a ex-mulher, mas enfrenta outro tipo de problema ao conhecer Tiffany (Lawrence), que também não anda muito bem da cabeça.
De qualquer maneira, no saldo final, eu não concordo com a costura de David O. Russell (que escreveu o roteiro), mas entendo cada uma delas. Você pode não gostar de filé com fritas, mas tem que admitir que o prato alimenta.
O. Russell pegou um material forte, às vezes deprimente, distante e literário (páginas e páginas com cartas, por exemplo), e o transformou num eficiente PF, numa clássica história de amor maluquinha com a estrutura “cara quer ficar com garota, mas é impedido por diversos obstáculos”.
Mesmo usando diferentes temperos e tempo de cozimento, ele manteve o “spine” da história. E agora vocês devem prestar atenção: aí está o segredo da coisa toda.
Como elucida Joseph McBride no simpático Writing in Pictures, “spine” é nada mais do que a espinha dorsal da obra, onde estão as situações mais interessantes de cenas, as atitudes que revelam muito sobre os personagens principais etc.
A espinha dorsal de O Lado Bom da Vida, livro, está no filme: a história mostra como um sujeito com problemas consegue retomar sua vida, superar traumas e encontrar um novo amor.
O problema é saber para que lado levar a brincadeira. Nessa hora, você escolhe como e o que pretende adaptar. Então, pode trucidar a obra como quiser, ir pra frente e pra trás, matar personagens e centenas de páginas – desde que a espinha dorsal esteja lá, deixando tudo em pé.
Pelo sucesso de crítica, as indicações ao Oscar, a bilheteria, O. Russell levou Pat para o lado do sucesso – e da leveza.
Há três mudanças fundamentais nessa transposição.
A primeira e mais óbvia: no livro, o narrador é o próprio Pat (daí o título original, The Silver Linings Playbook). No filme, há alguma voz em off de Pat, mas temos uma narração onisciente, capaz de nos revelar muito sobre os outros personagens e, principalmente, mais sobre Tiffany, que de fato vira co-protagonista, carregando várias cenas que não existem no papel.
Isso é fundamental para estabelecer o interesse romântico e também acelerar a história. No livro, vamos descobrindo tudo junto com Pat. No filme, ele – e nós – já sabemos umas 200 páginas em cinco minutos. Não há suspense; O. Russell prefere a piada e os pequenos traumas, nivelando todos os personagens (vale a pena mencionar que a revelação do por que Pat foi parar no instituto acontece quase no final do livro – mas no começo do filme).
Segunda mudança drástica: no filme, o personagem do pai é feito pelo Robert De Niro. Agora vamos entender como as coisas funcionam quando um material vai para as telas.
No livro, Pat Sr., o pai, é um personagem passivo, que não consegue lidar com a realidade e passa grande parte da trama fora da ação, em seu escritório. É um sujeito dos mais desagradáveis (talvez o mais desagradável de todos), alguém que não queremos conhecer. Ele troca meia dúzia de palavras com o filho em 250 páginas.
Mas no filme, o pai praticamente força uma relação com o seu rebento. Ele fala pelos cotovelos, tem toque, faz apostas, vive em sociedade e parece um cara bacana. Ué, mas o que aconteceu?
Em entrevista, Matthew Quick (o autor) explica que De Niro e Bradley Cooper têm uma relação de pai e filho (principalmente depois do bom Limitless, que fizeram juntos em 2011).
O. Russell conseguiu De Niro. Você tem certeza que vai dar um personagem antipático que quase não fala para Robert De Niro? Vai confinar o astro em duas sequências sofridas e nada confortáveis? Ainda mais num filme em que todo mundo é bacana e ele quer contracenar com seu pupilo, Bradley Cooper? Bom, então trate de fazer pai e filho tagarelarem, brigarem e se reconciliarem várias vezes. Pronto. Assim você muda um roteiro.
Há também uma alteração importante do local onde se passa a história (de New Jersey para a Filadélfia). Sem contar o massacre que alguns personagens sofreram (principalmente Danny e o genial – no livro – Dr. Patel). Mas acho que já deu pra vocês entenderem.
O mais curioso é que o livro é escrito por Pat como se ele estivesse vendo um filme da própria vida. Então, alguns trechos são redigidos no formato de roteiro de uma obra cinematográfica (isso acontece quando ele fala sobre o treinamento de Rocky, personagem de Sylvester Stallone, por exemplo).
A falsa impressão que temos é que o livro está “pronto para ser filmado”.
Talvez. O fato é que O. Russell não pensou assim (e ele tinha Bradley Cooper, Jennifer Lawrence e Robert De Niro, lembrem-se).
Se a gente colocar um pequeno texto para várias pessoas adaptarem, podem ter a certeza que ninguém irá fazer a mesma coisa. Essa é a mágica do negócio.
Há muitos lados bons – e outros péssimos – na vida e nos livros. Deixe a espinha ereta e escolha um deles.

