A coxa de frango de “Killer Joe”

chicken

No livro Garota Exemplar (Intrínseca), de Gillian Flynn, o narrador (Nick) começa a agir numa delegacia como se estivesse num filme ou numa série policial. Aos poucos, percebe que todos pegam o café, conversam ou preenchem interrogatórios como se participassem de uma ficção. O personagem não sabe mais o que é real e o que é imitação.

A metalinguagem dá um nó ainda maior nas nossas cabeças, afinal é um personagem pensando que todos os outros se parecem como personagens – e ele é o único “real”.

Pois aí está um desafio tremendo de qualquer autor hoje. Como ser original? Ou melhor: o que é ser original?

Como dar autenticidade a uma determinada cena?

Ser original é ser… humano. É deixar claro que aquilo só poderia ter saído de um humano – e jamais de um computador ou de um sujeito mais parecido com uma besta plagiadora.

Sobre esse assunto, vale ler O Humano Mais Humano (Companhia das Letras), de Brian Christian.

Mas eu quero falar sobre a coxa de frango de Killer Joe, o mais recente filme de William Friedkin. A coxa frita de frango do KFC é a protagonista do momento “mais humano” desse longa estranhíssimo.

Vamos passar um pouco a história. Chris (Emile Hirsch) é um garoto que para pagar suas dívidas decide tomar um caminho um tanto tortuoso: pretende matar a mãe e assim pegar parte da grana que a mulher deve deixar para a filha menor, a adolescente Dottie (Juno Temple). Para o plano dar certo, ele contrata Joe Cooper (Matthew McConaughey), um assassino profissional.

Como dá para perceber, o terreno é pantanoso. Para piorar, a hipótese levantada por Chris começa a parecer fichinha perto das aberrações morais que vão surgindo (e são muitas e de todos os calibres).

Parece que estamos diante de um Nelson Rodrigues menos irônico e muito mais norte-americano (violento) do que grego (filosófico). Claro, tudo isso só poderia acontecer no Texas (assim como Nelson usava o Rio de Janeiro).

O texto é adaptado de uma peça de Tracy Letts, que já tinha escrito o filme anterior de Friedkin, o ainda mais interessante Bug (2007).

Friedkin tem 77 anos e guarda tudo daquele sujeito dos anos 70 que tocou fogo em Hollywood com os prêmios por Operação França (1971) – foi na época o diretor mais jovem a receber um Oscar – e o sucesso aterrorizante de O Exorcista (1973).

A partir da década de 80, ele conheceu o fracasso e o desprezo. Fazer o quê? Parece que as coisas funcionam assim na vida.

Mas vamos voltar para a coxa de frango. Ela faz parte da cena final do longa, que começa depois de uma hora e 12 minutos de filme e dura cerca de 30 minutos.

Fiquei com a impressão de que tudo foi construído pra gente chegar ao inusitado e brutal uso dessa mísera coxinha banhada em óleo. Consigo ver Letts sentado na sala de seu apartamento descolado enquanto devora um balde do KFC e pensa: “Vou fazer uma peça pra alguém chupar esse negócio”.

Talvez você já saiba o que Matthew McConaughey (numa atuação fenomenal) faz com o alimento. De qualquer maneira, não vou contar aqui.

Se o filme é bom? Sim, acho que é. Tem uma escalação de elenco duvidosa e um tom sério demais que às vezes coloca tudo a perder. Mas toda essa sequência final… Wow.

É uma daquelas iluminações que um escritor procura ter. Apesar de espalhar bons momentos pela trama, Tracy Letts tinha que ter alguma coisa só dele, algo que o colocasse no mundo, que deixasse Killer Joe com o selo “propriedade de Letts”. E essa coisa é a coxa de frango.

Só um desgraçado de um humano para pensar num momento desses. Só a arte para nos dar algo tão visceral, triste e cruel.

Aposto minhas fichas que um computador não conseguiria profanar desse jeito uma inocente coxa de frango.

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