Yonju, a melhor roteirista das Coreias

another country

Realmente é impressionante. O regime do ditador Kim Jong-un conseguiu colocar os norte-coreanos como vilões favoritos dos filmes de Hollywood. Eu não achava que os árabes iriam perder o título tão cedo. Mais uma proeza do garotão que está fazendo a turma voltar a se preocupar com o fim do mundo – e você pensando que o perigo estava apenas no aquecimento global.

Ainda acho que os russos são os melhores vilões de filmes – nazistas, alienígenas e assombrações não entram na minha lista porque são esquisitos demais.

Pensar na Coreia do Norte é imaginar violência, aberrações políticas, fome e extermínio em massa. Um lugar tão fechado que nem a razão entra.

Enquanto eu comprava um ingresso para o filme A Visitante Francesa, imaginava esse cidadão norte-coreano que nem sonha o que falamos – e pensamos – sobre ele. O cara lá, apagando a lamparina, limpando a farda, e o resto do planeta comentando que o sujeito é doido.

E então eu estava do outro lado da fronteira. Foi só começar a fita (ainda acho legal chamar de fita, não sei se pode) e voltei a sorrir ao ver um coreano. Eles existem, não querem matar ninguém e são uns bêbados mulherengos e simpáticos. Só que parecem estar concentrados no sul.

Como é que pode? O Hélio Schwartsman escreveu na Folha que a região das Coreias oferece uma boa chance de a gente observar um “experimento natural” (leia aqui).

Tão próximos e tão distantes. Todas as semelhanças geográficas e físicas se tornam radicais diferenças culturais e políticas.

Como menciona o articulista, “Essa é, provavelmente, a melhor demonstração possível de que as instituições fazem toda a diferença”.

A Visitante Francesa é do sul-coreano Hong Sang-soo. Um espírito livre, vamos dizer assim (ou dominado pelo mercado, para os mais exaltados).

E que belo filme sobre o quanto podemos fazer com a narrativa, com a imaginação. Um detalhe, e mudamos o mundo.

Parece ser assim que pensa Yonju, a garota que no início do longa-metragem resolve escrever um roteiro para “acalmar os nervos” um pouco e esquecer os próprios problemas.

Pois apesar da pouca idade e de escrever suas palavras num pedacinho amarelo de papel, numa letrinha fofa, ela é uma das melhores roteiristas em atividade. Se estivesse no Brasil, a Ancine só poderia autorizar captação de dinheiro para as obras que ela tocasse.

A garota nos conta basicamente três histórias passadas num balneário furreca envolvendo uma francesa (sempre Isabelle Huppert, não sei como consegue ser graciosa e boba ao mesmo tempo). Na primeira, ela é uma cineasta que descansa um pouco na companhia de um casal sul-coreano; Na segunda, vira a amante de um diretor de cinema que usa o lugar como alcova; Na última, quer curar a dor de corno, pois foi abandonada pelo marido.

Alguns personagens são fixos nas três histórias, como o salva-vidas e a recepcionista da pousada onde todos se encontram.

images

Fazia tempo que eu não me divertia tanto com algo vindo daquele lado do mundo. Depois de ver A Visitante Francesa, fica difícil acreditar que os norte-coreanos são tão sisudos. Não é possível. É só pular a fronteira e tomar umas com o pessoal do sul.

O senso de humor do filme é espetacular. O choque entre a francesa e os sul-coreanos faz com que todos tentem se comunicar num inglês macarrônico (o que por si só é engraçadíssimo). Essa é a base de diversos mal-entendidos que movem a comédia.

Além disso, temos o prazer de encontrar outros costumes (o meu preferido é essa boa ideia de se embebedar de soju, o destilado favorito por lá) e paisagens.

Toda a parte crítica, orientações sobre a bacana obra de Sang-soo e análises bem mais interessantes do que as minhas, deixo para Luiz Carlos Oliveira Jr. na Bravo! e o mestre Inácio Araújo.

Eu fiquei fascinado porque minha suspensão da descrença foi tão gigantesca, que a todo instante eu pensava que a Yonju era uma roteirista muito da porreta.

Claro, o roteiro é do Sang-soo e a Yonju não passa de uma personagem, ela não existe (há controversas sobre isso no mundo acadêmico, mas vamos deixar pra lá). Mas como esse artifício da narrativa funciona! Ali está a contadora de histórias, com sua ingenuidade, seus casinhos de amor castos, suas confusões meio toscas, seu mundo curioso e adorável.

A Visitante Francesa evoca a alegria que é poder criar universos, mover as peças no tabuleiro de vidas inventadas. Taí um filme que eu indico para quem quer ficar motivado para se tornar roteirista.

Ficamos de boca aberta diante de uma grande brincadeira. Pois os atores estão se divertindo, todos parecem realmente brincar com suas falas, com seus esbarrões.

Sem contar a parte formal, o uso do cinema e do olhar. Vejam como histórias diferentes passadas num mesmo local contaminam nossa visão sobre o ambiente.

Coloque uma mulher desesperada olhando o mar e você só enxergará tristeza, com o oceano virando uma salgada metáfora das lágrimas de dor. Mas tire essa personagem e coloque, no mesmo lugar, uma fogosa amante falando “como é bonito” enquanto é tocada pela água e pronto, já pensamos estar de volta ao paraíso.

O filme é cheio desses deslocamentos, dessas mudanças de percepção e olhar.

Acho que tem algo do princípio de Heisenberg em A Visitante Francesa. O espaço é sempre alterado com a presença do observador. Estamos mudando a vida dos outros, mesmo sem saber, num pequeno encontro, numa fala, num olhar.

Mas isso é coisa da minha cabeça. A Yonju só quis desestressar. E assim nasceu um baita filme.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑