Dentro da ficção

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Não resisto a uma narrativa que use a metaficção. Tenho uma boa vontade danada com qualquer obra literária que revele um pouco de seus truques e mostre o processo criativo (ou não) do autor. Claro, também trabalho com a escrita, então a identificação já se faz na sinopse.

Assim como acontece com os livros, eu também não perco um filme que envolva roteiristas, escritores e jornalistas.

Apesar que não sei se todo mundo gosta automaticamente de ver filmes, peças e ler livros que tratem das suas próprias profissões. Enfermeiras não perdem Grey’s Anatomy? Assassinos curtem Dexter? Publicitários ficam ansiosos pelo próximo episódio de Mad Men? Jornalistas estão roendo as unhas pela nova temporada de Newsroom?

Querer ver algo relacionado ao seu próprio ofício não significa que você obrigatoriamente irá gostar daquilo.

Aliás, quem manja de algo retratado na tela costuma descer a lenha no roteiro. Médicos torcem o nariz e dão aquela bufada (“Pfui. Não, não, não é assim, não”) depois de uma sessão de ER. Afinal, o sujeito tem que abusar da suspensão da descrença para acreditar em tanta coisa diferente daquilo que ele conhece tão bem.

Eu creio, portanto, que o prazer de ver uma obra inspirada naquilo que você entende vem muito mais desse seu conhecimento da área. Você sabe mais do que os roteiristas, atores, diretores etc. Se quisesse, poderia fazer um episódio inteiro daquele negócio. Quer situação mais satisfatória do que se sentir inteligente?

Por isso, uma obra narrativa que mexa com sua profissão sempre será prazerosa – mesmo se ela for horrível. Você sairá dessa experiência com uma das frases: “Porra, os caras manjam. É assim mesmo!”; ou “Nada disso! Burros! O bisturi nunca cai em pé. Sou bem melhor que esse cara”. Ou seja, o espectador sempre sai ganhando, é a tal da win-win situation.

Volto para o meu caso. A metaficção me atrai porque vejo o autor em ação. Mas essa dramaturgia me arrebata se isso não atrapalha o real objetivo da obra.

Dá pra ver esse processo atualmente nos cinemas. Dentro da Casa, de François Ozon, é um filme que trata da metaficção. Ali temos Germain (Fabrice Luchini), professor de literatura no bonito liceu Gustave Flaubert. Um de seus alunos, o esperto Claude (Ernst Umhauer), logo mostra imensa capacidade artística e passa a escrever interessantes relatos. As redações de Claude versam sobre as incursões dele na casa de um amigo, onde acaba se apaixonando pela linda e entediada Esther (Emmanuelle Seigner), uma MILF de responsa.

O professor fica fascinado com o folhetim do aluno. Ao identificar o talento do garoto, é como se ele próprio realizasse o sonho de escrever algo com impacto, com vida. Ele incentiva a escrita e, ao mesmo tempo, a bisbilhotice de Claude.

Então nós, espectadores, passamos a acompanhar duas histórias: aquela que Claude supostamente está escrevendo ao visitar a tal casa; e o cotidiano de Germain, um pobre coitado que ainda acredita no valor da literatura e detesta a arte contemporânea vendida na galeria de sua mulher.

Aos poucos, o filme quebra a nossa suspensão da descrença da história de Claude. O roteiro passa a revelar os truques da narrativa, identificando como as redações do adolescente estão manipulando a realidade, o professor e todos nós.

A partir desse momento, ficamos ainda mais interessados na relação do professor com o aluno, pois é essa história que agora exige a nossa crença.

É como se nos dissessem: “Ok, aquilo ali de invadir a casa é apenas uma história que estou mostrando, mas isso aqui sim é real”.

De qualquer maneira, nunca perdemos de vista o tema do filme: a manipulação e seus efeitos. Seja na metaficção ou “na história das redações” de Dentro da Casa, estamos tratando do mesmo assunto, mostrando que um livro, um filme, uma obra de arte, uma história que nos é contada, tudo nos contamina e nos muda.

Basta parar agora mesmo e olhar pela janela. Veja aquela garota passando com sua saia listrada, sua sapatilha e cabelos longos, uma blusa jogada no ombro, mesmo num calor de 30ºC. Curioso. É só uma questão de intensidade, mas pequenas mudanças já ocorreram no seu cérebro.

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Por isso gosto muito das peças do Enrique Diaz, um diretor e ator que sempre trabalha com metaficção (teatral, mas que envolve a escrita literária). Ao falar “isso aqui é teatro”, ele nos joga para outra história, mais confortável e “real”.

Ficamos eternamente na dúvida. Assim é a peça A Primeira Vista, de Daniel Maclvor, com direção de Diaz. Duas mulheres (Drica Moraes e Mariana Lima) relatam diversas histórias sobre a amizade entre elas. Ao mostrar que estão encenando tudo aquilo num teatro, estipulam o tipo de jogo que devemos comprar. Elas não estão nos enganando. Ora, então elas existem!

Por outro lado, a metaficção encontra diversos críticos, que acusam essas obras de simplesmente não conseguirem lidar com o fracasso da ficção plena.

Mas deixo essas coisas para outro momento. Já me enrolei demais. Não consegui citar umas coisas sobre Tristram Shandy que estão num livro de David Lodge. Demorei tanto para encontrar o trecho e agora ele simplesmente não cabe mais aqui. Sem contar que ainda não tomei meu café – talvez por isso algumas ideias ficaram um tanto tortas, eu preciso de café.

E meu texto começou a dar razão ao Tom Wolfe que discordou sobre o valor da metaficção assim: “Mais uma história sobre um escritor escrevendo uma história! Mais um regressus ad infinitum! Quem não prefere arte que ao menos parece imitar outra coisa que não os seus processos característicos?”.

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