Antes de mais nada, um spoiler. Mas calma que é um spoiler inventado por quem legendou em português o filme Capitão América 2: Soldado Invernal (nome meio ruim também, não?). A turma de Hollywood torra mais de cem milhões de dólares para fazer uma obra bacana e um tradutor resolve entrar de bicão na festa e ainda deixar a sua marca. Assim, em determinado momento da fita, um personagem explica que o sistema de vigilância inventado por uma agência secreta é capaz de saber tudo sobre todos, até mesmo a movimentação bancária, ligações telefônicas e… as notas do Enem! Pronto, fiquei cinco minutos rindo e perdi um bom trecho da intrincada e empolgante história.
Por favor, não façam mais isso (claro, o texto original se referia a notas dos estudantes norte-americanos). Até porque os diretores Joe e Anthony Russo já comandaram muitos episódios de Community (juntamente com Veep, a melhor comédia em cartaz na TV) e injetaram uma dose suficiente de humor na trama e nos diálogos dessa nova aventura de Steve Rogers.
Agora sim. Vamos ao que interessa. Você deve ter lido na imprensa brasileira que Noé é uma boa porcaria. Não é. No mínimo, como mencionou David Denby, um dos críticos da New Yorker, é “craziest big movie in years”. Perfeito. Bota loucura nisso.
(Outra interrupção rápida: essas críticas com gracinhas bíblicas, como “Noé exige paciência de Jó”, são um porre.)
Mas o que realmente vale a pena em Noé? O próprio Noé, pô. Fazia tempo que eu não me envolvia com um personagem tão complexo, delirante e fascinante. Qualquer um interessado no processo de escrita cinematográfica tem que ver o filme dirigido por Darren Aronofsky (que assina o roteiro junto com Ari Handel).
Ah, só uma coisa: também não entendo por que reclamam tanto das estátuas de pedra que falam. Eu achei sensacional e colaborou e muito com minha suspensão da descrença. Eu sempre duvidei dessa história do Noé. Como ele teria conseguido construir uma arca daquele tamanho (tá, a única Bíblia que li foi a do Crumb)? Agora entendi. Durante anos e com a ajuda dos monstrengos, o escolhido por Deus deu conta do recado. Bem mais crível pra mim. Obrigado criaturas de rocha (e eles têm as vozes de Frank Langella e Nick Nolte; sério, como achar isso ruim?).
Até que eu gostaria de falar mais sobre a fotografia de Matthew Libatique e a riqueza de suas imagens (a movimentação da câmera, sempre subindo e descendo, é fenomenal) e como há muito do pensamento de Aronofsky em cada sequência (é um filme dele, sem dúvida), mas só vou ficar com o Noé mesmo.
Vejam que imenso trabalho de construção de personalidade. Um sujeito bom e afável, que de repente recebe o maior fardo de todos: salvar a bicharada e jogar a pá de cal na humanidade. Sim, isso seria de enlouquecer qualquer um. E é exatamente o que acontece, com o filme se transformando num perturbador suspense quando se estabelece dentro da arca (também com um maravilhoso projeto cinematográfico).
A última hora é um terrível ensaio sobre o fanatismo, algo muito próximo do que deve ter acontecido com Jim Jones ou na tragédia de Waco, Texas.
Eu amei, detestei, torci, briguei, chorei e fiquei puto com Noé. Tudo por causa da complexidade insondável de seu personagem principal.
Noé pode ser biruta e com diversos problemas, mas é interessantíssimo até mesmo nos seus erros. E traz o melhor protagonista de blockbusters dos últimos anos.
O que nos leva para Capitão América 2: Soldado Invernal, dirigido pelos Russos e escrito por Christopher Markus e Stephen McFeely.
Também com excelentes personagens (finalmente entendi por que Scarlett Johansson é tão legal como Viúva Negra) e cenas muito bem decupadas (as perseguições na rua são espetaculares e claríssimas).
O sujeito com o escudo é um dos meus heróis favoritos porque gosta de sair no braço e tem alguma fragilidade (não sei, mas sempre acho que ele será o primeiro a morrer). Também curto porque nos dois filmes ele luta contra naz… Ops, quase.
Também há muita coisa pra falar do ritmo, dos ótimos diálogos, da sacada de colocar o Assange como mentor da turma do bem e do humor (como é bom super-herói com humor – por isso os Batmans recentes foram um porre, era muito sério).
Mas o que realmente vale a pena em Capitão América 2? Essa absurda capacidade do roteiro de armar duzentas bombas e depois desarmar todas elas.
Observe que nada é gratuito ou fora de lugar. Tudo é colocado em cena para logo mais ser retomado e, invariavelmente, ser usado como obstáculo para os heróis não atingirem o objetivo.
Se alguém cita numa cena um determinado objeto, pode ter certeza que ele vai reaparecer da forma mais surpreendente; se um broche é colocado na lapela de um personagem só porque assim exige o protocolo, pode ter certeza que esse negócio pode virar algo mais; se há um comentário perspicaz sobre certa atitude do vilão, pode ter certeza que vamos ver essa atitude mais tarde.
Isso é maravilhoso de se escrever (e mais legal ainda de ver). Há uma quantidade enorme de informações que vão sendo empilhadas e retomadas e novamente sugeridas, sempre de forma inesperada e empolgante. Esse volume de dados respeita a inteligência de quem está na poltrona, ajuda a aprofundar os personagens e deixa os obstáculos muito mais atraentes. Divertidíssimo.

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