A partir de hoje, o blog O Roteiro começa a publicar uma série de entrevistas com roteiristas e diretores sobre o processo criativo para elaboração de séries de TV e filmes. Além disso, essas conversas irão abordar como funciona o mercado de roteiros no Brasil, quais as qualidades e defeitos dos produtos audiovisuais nacionais e por que as séries norte-americanas são hoje idolatradas por quem escreve para TV e cinema.
O primeiro entrevistado é o roteirista Thiago Dottori.
Nesta primeira parte, ele fala sobre como foi o desenvolvimento da série Psi, exibida pela HBO, que tem como protagonista o psicanalista, psicólogo e psiquiatra Carlo Antonini (Emilio de Mello).
*
Thiago Dottori é roteirista da série Psi (HBO). Neste ano, a série Pedro e Bianca, criada por ele, Teo Poppovic e Cao Hamburger, ganhou o Emmy Kids Internacional de melhor série de 2013.
Cursou letras na USP e se formou em cinema na Faap. Começou a carreira como assistente de direção na produtora O2, em São Paulo (aqui uma pequena entrevista em que explica seu início de carreira).
“Indicou” Rachel Weisz para ser parceira de Ralph Fiennes em O Jardineiro Fiel e escreveu os filmes Os 3 e VIPs.
Também fez o roteiro de um episódio da série Destino: São Paulo (HBO) e escreveu a série Trago Comigo (TV Cultura) para Tata Amaral.
*
Quando e como entrou no projeto da série Psi?
Entrei para o projeto em 2012, acho que em fevereiro. O projeto já estava aprovado e o Contardo [Galligaris, psicanalista e escritor; criador, roteirista e coprodutor de Psi] procurava alguém com alguma experiência em roteiro para ajudá-lo a colocar a série em pé. Eu já tinha escrito um roteiro para a HBO, um episódio da série Destino: São Paulo, chamado O Banquete do Avô. A princípio, a ideia era a gente desenvolver um pouco mais a bíblia [documento com as sinopses dos personagens e dos episódios] que ele já tinha e depois chamar mais alguns roteiristas para se juntarem ao time. Acontece que fomos nos animando e ficamos tão envolvidos com tudo aquilo que seguimos em frente e escrevemos apenas nós dois todos os 13 roteiros (quase 700 páginas…).
Já existia uma bíblia? O que estava desenvolvido? Você e o Contardo escreveram uma bíblia final com sinopse da série e dos personagens? Há trajetória para as personagens até quando? Quantas sinopses desenvolveram?
Sim, a série já tinha uma bíblia, com os personagens principais, sinopses para os 13 episódios, conceito geral etc. E, mais do que isso, há os dois romances escritos pelo Contardo, cujo protagonista é Carlo Antonini, chamados O Conto do Amor e A Mulher de Vermelho e Branco [os dois editados pela Companhia das Letras].
Depois que eu entrei a gente ainda fez algumas alterações na ordem dos episódios e também recriamos mais duas sinopses de episódios em que não ficamos satisfeitos, não pareciam à altura dos demais. Com todos os roteiros escritos, reescrevemos a bíblia, para que a gente tivesse ainda um documento atualizado de todo o processo.
Com relação à trajetória para os personagens, há uma linha geral para o núcleo de Carlo, as relações entre ele e seu núcleo íntimo – ex-mulher, enteados, filho, amigos, um caminho para a segunda temporada – que estamos escrevendo agora – bem como para uma possível terceira.
Quais as referências que teve que ler e ver para escrever a série? Realizou alguma pesquisa de campo ou teve que entrevistar pessoas e psis? Como foi esse processo?
Bem, pela estrutura, acho que a primeira série que vem à cabeça é House, porque os episódios são “procedurais”, mas há também um bom desenvolvimento na relação entre os personagens principais. Ou seja, em termos de estrutura, é o que mais se aproximava. Porém, não há num “espelho” tão rígido como o de House – que tem aquela estrutura quase fixa (grosso modo): apresenta o caso, ele recusa, começa um tratamento, aparentemente dá certo, o caso piora, eles invadem a casa, House tem a sacada genial etc… enfim, eu adoro aquilo, foi minha série preferida por alguns anos, mas aqui não se queria pensar numa estrutura tão rígida em torno dos casos, até porque não há uma “cura” tão clara – se é que podemos falar nesses termos em casos psi. Mas, enfim, House foi uma primeira referência.
Depois, a gente gostava muito do que via dos diálogos do Sorkin [o roteirirista Aaron Sorkin, ganhador do Oscar de melhor roteiro pelo filme A Rede Social] em Newsroom, mas acho que não conseguimos ir muito em frente com isso, uma vez que há um outro peso e ritmo nas nossas falas – temos um ritmo menos alucinante que o do Sorkin, claro. Acho que há também uma enorme vontade de conseguir ter tensão dramática suficiente nas cenas, que a gente consiga “esticar a corda” daquele jeito que o Breaking Bad faz miseravelmente bem.
Mas, ao mesmo tempo, Contardo tem as próprias ideias sobre tudo. Uma delas, por exemplo, é que, diferentemente de House, aqui a gente quer que as pessoas que assistam à série possam sair do episódio com uma noção real de psicanálise ou psiquiatria em função do quadro psíquico que a gente apresenta. Então, as conversas de Carlo e Valentina tem essa vontade de passar um conhecimento adiante (talvez isso não seja possível em House, em que os embates entre ele e a equipe serviam mais a um propósito de conflito, cujo conteúdo é acessível apenas a médicos formados, por exemplo).
Eu fiz alguma pesquisa de campo, por exemplo, visitei cemitérios, encontrei um “Severino” (um coveiro intelectual) em um deles… mas o Contardo é um psi muito experiente, clinicou em diversos países, faz isso há 40 anos se não me engano, então, na verdade, como criador e conhecedor profundo desse universo, bem como fonte de histórias e casos, o Contardo é a maior referência, ele sabe como fala um psi – ou ao menos, o nosso psi – e como lidar com um caso (e quando, por acaso, não conhece em detalhes determinada patologia, lê no mínimo cinco livros sobre o assunto, conversa com os maiores especialistas e logo está te dando uma aula sobre o tema).
Você participou do processo de pré-produção (casting, direção de arte, locações etc.)?
Eu não participei ativamente desse processo, mas em parte, de algumas escolhas de elenco. Não que eu tenha sido fundamental na decisão desse ou daquele personagem, mas eu participei de algumas dúvidas e defendi alguns atores do núcleo principal no processo. E também muitas vezes eu escrevi alguns personagens com alguns atores em mente – como o caso da vizinha do episódio 6, feita pela Carolina Mânica e o protagonista do episódio 8, feito pelo Daniel Dottori; assim como a promotora do episódio 12, feita pela Paula Picarelli, a Bel Teixeira no episódio 13 e mais alguns. Então eu pude indicar muitos atores para o produtor de elenco e na maioria das minhas indicações eu fui feliz. Mas, diferente de outros processos, em Psi, na figura do Contardo, o criador e roteirista foi muito participativo de toda a pré-produção, bem como das filmagens e também nas decisões de montagem. Ele atuou como um showrunner.
Quais as dificuldades específicas para se escrever um projeto desses? Existem episódios mais complicados que outros?
Sim, claro. Existem episódios em que o caso clínico já propõe um andamento dramático, uma certa cadência em que “levantar” a estrutura do roteiro foi um passo mais natural. Já em outros, a discussão proposta era mais um “estudo de caso” e nesses a gente teve um pouco mais de dificuldade para encontrar a história adequada que servisse àquele propósito, para que não ficasse apenas discursivo ou muito teórico. Mas, claro, tudo dentro de um universo e de uma experiência muito rica do Contardo em torno de casos e pacientes que ele encontrou ao longo de toda sua carreira clínica. Mas, a partir da experiência real, a gente quebra um pouco a cabeça para transformá-la numa experiência dramática de um episódio de 50 minutos.
Outro desafio importante em relação aos episódios, ao menos em alguns deles, era lidar com tabus. Uma coisa muito clara no conceito da série é que há uma defesa das escolhas morais, do indivíduo, que se dão de acordo com as suas circunstâncias. Essas são sempre as decisões que a gente pode tomar – nunca as “colegiadas”, politicamente corretas, éticas, ideológicas… Então, nesse sentido, muitas vezes a série se coloca sob o ponto de vista de personagens que causam uma certa repulsa na maior parte das pessoas. Como contar a história de uma mãe que é capaz de machucar gravemente seu bebê? Como retratar de maneira humana e criar empatia com um pedófilo, ou melhor, um sujeito que tem fantasias sexuais com crianças? Como entender e criar empatia com uma mulher que sequestra crianças, ou uma vampira urbana que arranca sangue de suas vítimas?
De alguma maneira, essa é a nossa função como roteirista, sempre, e também, analogamente, a função de um psi: assim como a gente deve encarar abertamente qualquer personagem, um psi também deve encarar qualquer sujeito que se deite no seu divã e lhe relate o mais absurdo desejo – que, afinal, costuma ser absolutamente comum.

