A importância da bíblia

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Escrever a bíblia de uma série é… Oh, Deus, não consigo nem começar. É um treco absurdamente cansativo e chato. Muito chato. Você tem que perder tempo montando um texto e uma estrutura que vão servir para os executivos e produtores da série. Servir? Na verdade, muitas dessas frases vão enganar a turma, porque quando você colocar a mão na massa, provavelmente mudará grande parte das sinopses, enredos e perfis.

Mas é assim que a coisa funciona. Em algum momento terá que organizar as tramas, traçar um panorama mais complexo dos personagens e pensar as linhas gerais de todas as histórias da temporada.

Tudo isso é compilado num documento que chamamos de bíblia. Esse calhamaço forma por um tempo (pequeno ou imenso, depende do dinheiro) o item mais importante da sua produção.

Pensando bem, chega a ser emocionante ver esse caldo tomar forma. Quando menos espera, você está diante dos Dez Mandamentos, das duras e fixas leis que vão gerar e governar o seu universo.

Porém, como acontece na história do mundo, novos fatos aparecem, a narrativa se altera, apóstolos dão seus palpites e um outro testamento aparece. Se tudo der certo, logo essa bíblia vai para o lixo, sendo irremediavelmente ultrapassada pelas escaletas, roteiros e filmagens que de fato dão vida para seus pensamentos.

Pobre bíblia. Sua ascensão e queda sempre acontece. Pior: ela nunca é lembrada nem espalhada pela internet. O roteiro chega e toma conta do pedaço, como uma nova religião avassaladora.

Você cita trechos de diálogos dos Sopranos, elogia a trama de True Detective, fica apaixonado pelo ritmo de Mad Men, enlouquece com a perfeição de algumas temporadas de The Wire, mas nunca coloca a culpa na bíblia. Tudo é por causa do roteiro, esse demônio que rouba as histórias e personagens pra ele.

Por isso é chato escrever a bíblia. Porque você sabe que um dia aquilo voltará ao pó do esquecimento, que cada frase é apenas o rascunho de algo grandioso. O que você quer mesmo é ver a Mona Lisa pronta (ou o Homem Vitruviano, aliás, belo livro esse O Fantasma de Da Vinci, de Toby Lester, lançado pela Publifolha).

Só que aí vem o Paul Feig, diretor de Bridesmaids, e solta trechos da bíblia de Freaks and Geeks, série que ele criou em 1999 e foi produzida por um jovem Judd Apatow.

Freaks and Geeks, uma espécie de Anos Incríveis que não foi pra frente, revelou toda uma turma da pesada (James Franco, Seth Rogen, Jason Segel) e me incomoda até hoje. Como eu gostaria de bolar uma série tão bem interpretada e escrita a partir das minhas memórias escolares… Bom, quem nunca?

Agora, vejam que beleza de bíblia. O estilo de Paul Feig permeia tudo, transformando um simples tratado formal em algo de rara beleza e comicidade.

Então esse é o poder do documento primevo de uma série. Ele já carrega não apenas parte da estrutura do projeto, mas também a coisa mais importante: o tom.

Observem a elegância da sinopse geral e como Paul Feig descreve os personagens. Eu adoro especialmente os tópicos sobre as músicas que cada grupo escuta e a relação de situações que os alunos podem fazer enquanto acontecem as ações. Genial e copiarei firmemente.

Então é assim que essa história funciona: a bíblia pode ser ignorada depois que o trabalho de escrita de roteiros começa e o bicho cresce e vive, mas nunca podemos desperdiçar o tempo de fabulação desse documento.

É como querer cuidar de um bebê só depois que ele consegue te chamar de “papai”. Antes disso, há a necessidade de muitas trocas de fraldas e noites em claro.

Por isso, essa etapa de desenvolvimento merece ser mais apreciada e remunerada. Quantas vezes vamos topar com um conceito tão sólido como o de Paul Feig?

Escrever uma bíblia exige paciência e aprendizado. Não dá pra vomitar seis páginas de qualquer coisa só para entrar em concurso e querer agradar o produtor independente. Por mais que você saiba que tudo pode mudar, a bíblia ainda nos conta como tudo começou (mesmo que a gente não concorde com nada depois).

 

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