MacGuffin-urânio

notorious1

É uma desgraça para o cinema brasileiro o filme O Lobo Atrás da Porta não conseguir pelo menos um milhão de espectadores. Primeiro longa dirigido por Fernando Coimbra, da última vez em que olhei as bilheterias, ele não tinha alcançado nem 20 mil ingressos vendidos.

Tenso, muito bem construído e atuado, o roteiro parte de uma história real – conhecida como Fera da Penha – ocorrida na década de 60 do século passado. É um filmaço.

Não vale adiantar nada até porque a ideia de quebra-cabeça faz parte da curva ascendente do filme. Tudo sempre vai sendo colocado pra gente responder a pergunta dos primeiros minutos: “quem pegou a menina?”.

Essa tensão (o que aconteceu?), a simplicidade da trama (uma história de amor) e a figura de Leandra Leal (mocinha simples que pode ser irresistivelmente sexy e perigosa) me levaram a pensar em Alfred Hitchcock.

Mais precisamente fui parar em Interlúdio, lançado em 1946 e que tem roteiro de Ben Hetch.

Curiosamente, a ação se passa no Rio de Janeiro (como em O Lobo) e também relata uma história de amor irresistível e trágica (ambos com um triângulo amoroso).

No sublime livro Hitchcock/Truffaut – Entrevistas (Companhia das Letras), esse longa com Ingrid Bergman e Gary Grant ganha muitas páginas de análise.

Para Truffaut, Interlúdio “é um modelo de construção de roteiro”. O diretor francês acrescenta que Hitchcock conseguiu o máximo de efeitos com o mínimo de elementos e explica: “Todas as cenas de suspense se organizam em torno de dois objetos, sempre os mesmos: a chave e a falsa garrafa de vinho. A trama sentimental é a mais simples do mundo: dois homens apaixonados pela mesma mulher. A meu ver, de todos os seus filmes, é aquele em que se sente a mais perfeita comunhão entre o que você queria obter e o resultado na tela”.

Para quem não se lembra, eis um trecho do resumo da história do filme que está no livro:

No final da guerra, um espião nazista é condenado por um tribunal americano. Sua filha Alicia (Ingrid Bergman), que nunca foi nazista, leva uma vida depravada. Um funcionário do governo, Devlin (Gary Grant), vem lhe propor uma missão Ela aceita e ambos partem para o Rio. Apaixonam-se, mas Devlin, ainda assim, mostra-se desdenhoso por Alicia. A missão de Alicia consiste em retomar contato com um antigo amigo de seu pai chamado Alexander Sebastian (Claude Rains), cujo casarão serve de esconderijo para os espiões nazistas refugiados no Brasil. Alicia cumpre sua missão, frequenta a casa de Sebastian, que está alucinado por ela e quer se casar com a moça.”

É uma obra impressionante e não à toa Truffaut a coloca ao lado de Janela Indiscreta como os Hitchcocks dos quais mais gostava.

Abaixo, trecho em que o diretor explica como foi escrever o filme e detalha o processo para encontrar o MacGuffin (o motivo para fazer a trama andar).

*

notorious

Quando começamos a escrever Interlúdio e comecei a trabalhar com Ben Hetch, saímos em busca do MacGuffin e, como é frequente, fomos tateando e pegamos direções complicadas demais. O princípio do filme já estava estabelecido: a heroína, Ingrid Bergman, tinha de ir à América Latina, acompanhada pelo agente do FBI, Gary Grant, e devia entrar na casa de um grupo de nazistas e descobrir a atividade deles.

Na primeira versão, fazíamos entrar nessa história gente do governo, gente da polícia, e grupos de refugiados alemães na América Latina, que se exercitavam e se armavam clandestinamente em campos, a fim de formarem um exército secreto; mas não sabíamos o que fazer com esse exército quando ele estivesse formado, então mandamos tudo isso às favas e adotamos um MacGuffin bem simples, mas concreto e visual: uma amostra de urânio escondida numa garrafa de vinho.

No início, o produtor tinha me dado uma história muito antiquada, um conto publicado no Saturday Evening Post, com o título “A Canção das Chamas”, e que contava a história de uma moça que se apaixonava por um rapaz da alta sociedade nova-iorquina. Essa moça tinha um problema de consciência, pois no passado havia feito alguma coisa errada e imaginava que, se o rapaz ou a mãe do rapaz ficassem sabendo, o grande amor deles sucumbiria. O que era essa coisa? Durante a guerra, o serviço de espionagem do governo tinha ido ver um empresário teatral a fim de encontrar uma jovem atriz que agisse como agente secreta e aceitasse dormir com um espião para conseguir certas informações. Propuseram seu nome, ela aceitou e cumpriu a missão. Então, seu problema atual enche-a de apreensão e ela vai ver o empresário para lhe falar de seus escrúpulos. No fim da história, o empresário vai encontrar a mãe do rapaz, conta-lhe tudo e a mãe, muito aristocrata, diz: “Sempre quis que meu filho se casasse com uma moça realmente distinta, mas não esperava que conseguisse encontrar uma moça realmente tão distinta”.

Essa era a ideia de um filme para a sra. Ingrid Bergman e o sr. Gary Grant, e dirigido por Alfred Hitchcock! Então me sentei com o sr. Ben Hecht e decidimos conservar o seguinte: uma moça tem de dormir com um espião para conseguir informações. Ben Hecht e eu continuamos a falar, desenvolvemos a história e então introduzi o MacGuffin-urânio, quatro ou cinco amostras, parecendo uma espécie de areia, dentro de garrafas de vinho. O produtor retrucou: “Como? Pelo amor de Deus! O que é isso?”.

Respondi: “É urânio, e isso deve servir eventualmente para fabricar uma bomba atômica”. Ele prosseguiu: “Que bomba atômica?”. Estávamos em 1944, um ano antes de Hiroshima. Eu só tinha sobre esse assunto uma indicação, uma pista. Um escritor amigo meu havia me afirmado que, em algum lugar do deserto do Novo México, cientistas trabalhavam num projeto secreto, tão secreto que, quando entravam na usina, nunca mais saíam de lá. 

Também sabia que os alemães faziam experiências com água pesada, na Noruega, e foi assim que cheguei ao MacGuffin-urânio. O produtor estava escandalizado. Essa história de bomba atômica lhe parecia absurda demais para ser a base de uma história. Disse-lhe: “Não é a base da história, é só o MacGuffin”, e expliquei o que era o MacGuffin e a pouca importância que se deve dar a ele. No final, disse-lhe: “Se você não gosta do urânio, vamos pegar diamantes industriais, pois se imaginará que os alemães têm uma necessidade vital de diamantes, por exemplo para talhar seus instrumentos. Se nossa história não estivesse ligada à guerra talvez tivéssemos elaborado um enredo a partir de um roubo de diamantes, nada disso tem a menor importância”. Não consegui convencer o produtor e, assim sendo, duas semanas depois ele nos “revendeu”, a nós todos, para a RKO: Ingrid Bergman, Gary Grant, o roteiro, Ben Hecht e eu; tudo isso como um pacote.

Agora, preciso lhe contar o fim da história do MacGuffin-urânio, que vai acontecer quatro anos depois do lançamento de Interlúdio. Estou viajando no Queen Elisabeth e encontro um sócio do produtor Hal Wallis, um homem chamado Joseph Hazen. Ele me diz: “Sempre quis lhe perguntar como foi que você teve a ideia da bomba atômica um ano antes de Hiroshima. Quando nos ofereceram o script de Interlúdio, nos recusamos a comprá-lo pensando que era uma coisa muito idiota para servir de base a um filme”.

Voltemos atrás mais uma vez, pois devo lhe contar um episódio que precedeu à filmagem de Interlúdio. Ben Hecht e eu fomos à Escola Politécnica, em Pasadena, para encontrar o dr. Milikan, nessas alturas o maior cientista dos Estados Unidos. Fomos introduzidos em sua sala, onde havia, num canto, o busto de Einstein, era muito impressionante. A primeira pergunta que lhe fizemos foi: “Dr. Milikan, uma bomba atômica, que tamanho ela teria?”. Ele olhou para nós: “Vocês querem ser presos e querem que eu também vá preso?”. E, durante uma hora, nos explicou como era absolutamente impossível fabricar uma bomba atômica, concluindo: “Se pelo menos se pudesse controlar o hidrogênio, já seria alguma coisa”. Quando saímos, ele pensava ter nos convencido, mas mais tarde fiquei sabendo que, depois dessa visita, o FBI mandou me vigiar por três meses.

Voltemos ao navio, quando o sr. Hazen me diz: “Pensávamos que o urânio fosse uma coisa muito idiota para servir de base a um filme”. Então respondi: “Isso prova a que ponto o senhor estava enganado ao acreditar que o MacGuffin é importante. Interlúdio era simplesmente a história de um homem apaixonado por uma moça que, durante uma missão oficial, dormiu com outro homem e foi obrigada a se casar com ele. É essa a história. Agora o senhor percebe o erro que cometeu e que o fez perder tanto dinheiro, pois o filme, que custou dois milhões de dólares, faturou oito milhões de lucro líquido”.

 

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑