O cientista e escritor Marcelo Gleiser perguntou em sua coluna na Folha de S. Paulo: “Se pudéssemos estender a vida indefinidamente (salvo morte acidental), será que deveríamos fazê-lo?”.
Há uma resposta em cartaz. Amantes Eternos (ou seu belíssimo título original: Only Lovers Left Alive) é um filme sobre as vantagens e a melancolia da existência sem fim. Dirigido e escrito por Jim Jarmusch, o longa parece o trabalho de um exímio carpinteiro ou escultor. Suas reentrâncias, ângulos e planos lembram mais o exercício estético de um Bernini do que algumas dessas vulgaridades que chamamos de longas-metragens.
Há algo de sublime e religioso em suas imagens. Ao final, quando o silêncio da sala fica impactado pela trilha sonora majestosa, parece que de fato estamos numa igreja. Sentimos um toque de sagrado e divino na criação do homem.
Ainda mais porque vi a obra numa sessão vespertina, num local digno (não podemos culpar os exibidores por não acreditarem num filme cult) e com poucas almas. Quando a sessão terminou, a meia dúzia de crentes continuou ali, presenciando os créditos, envolvidos pelo som e pela estranha magia que a tela insistia em irradiar.
Amantes Eternos é um filme sobre vampiros. Ou melhor, ele trata de seres que precisam de sangue para sobreviver (e não é assim com a gente também?). Mas seu assunto é a cultura e a arte. Jim Jarmusch revela a beleza da criação artística, mostrando como o profano e o sagrado se misturam nos livros, na poesia, na música, no cinema.
Gleiser também oferece duas respostas para a pergunta inicial deste texto. No mesmo artigo, ele escreve: “No livro ‘Morte e o Após Morte’, o filósofo americano Samuel Scheffler diz que um ser imortal perderia a noção do trágico e do sublime e que, com isso, perderia o sentido da vida. Já Thomas Nagel, colega de Scheffler na Universidade de Nova York, discorda: ‘Por que não considerar que uma vida sem fim não seria uma busca sem fim, descobertas em sucessão, incluindo sucessos e fracassos? Humanos são altamente adaptáveis e desenvolveram muitas formas de se adaptar a mudanças materiais no decorrer da história. Não estou convencido de que o papel da mortalidade em definir nossas vidas implica que a imortalidade não seria algo aceitável’”.
No filme de Jarmusch, Adam (Tom Hiddleston) é um vampiro que vive em Detroit e parece concordar com Samuel Scheffler. Deprimido com a ignorância dos zumbis (nós) e entediado pelo infinito, ele chega a encomendar um projétil que poderia o levar até o abismo da morte. Músico fã de guitarras antigas e aparelhos retrôs, vive compondo sombrios acordes e negociando estética com o mortal Ian (Anton Yelchin).
Adam ama Eve (Tilda Swinton), vampira que mora em Tânger e concordaria com Thomas Nagel. Para ela, o mundo não se cansa de provocar boas surpresas. Ela tem um incessante olhar curioso sobre as coisas. Seu melhor amigo é Christopher Marlowe (John Hurt), o escritor do século 16 que escreveu as obras de Shakespeare (um mito que o filme trata como real). Eve procura sempre se reinventar, mesmo sabendo que tem toda a eternidade pela frente. Ela é capaz de produzir picolés de sangue O negativo apenas para alegrar seu amor.
Juntos, eles conseguem sobreviver, pois assim é a nossa história. Talvez seja impossível pensar na questão da vida eterna se ela necessariamente nos levar para a solidão.
Para atrapalhar os diálogos intelectuais de Adam e Eve por uma Detroit escura e morbidamente lindíssima, Ava (Mia Wasikowska), a irmã “mais nova” de Eve, aparece de mala e cuia. Se a “mais velha” encarna todas as belezas de um vampirismo sadio, Ava é um depósito de vulgaridades mundanas. Hedonista, ela vive em Los Angeles no meio de ricos cafonas (precisa dizer mais alguma coisa?). É como se fosse alguém presenteado com um dom que não sabe usar (ou usa de um jeito errado).
Portanto, Jarmusch parece dizer que há uma maneira correta de se viver eternamente.
Como escreve Richard Brody, um dos críticos da New Yorker, neste artigo, Amantes Eternos se emparelha com as ideias de Wes Anderson, preocupado em alinhar seus corpos, em produzir imagens ordenadas (mesmo quando caóticas).
Há uns 32 pequenos ensaios incubados no filme. É possível abrir qualquer uma das portas: as atuações milagrosas de Tilda (um dos grandes rostos de nossa época), Tom e Mia (será gigantesca); as referências musicais e literárias; a arquitetura de Detroit; a filosofia dos diálogos; a graça ingênua de piadinhas cifradas; a bizarra agitação do mundo contemporâneo x a contemplação serena dos vampiros etc.
Mas, por enquanto, vamos ficar apenas com a sequência abaixo, quando a dupla de vampiros encontra casualmente a cantora libanesa Yasmine Hamdan. A beleza desse momento justifica que lutemos eternamente para continuar por aqui.
