A montanha e o roteirista

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Vamos para mais uma daquelas metáforas espertas que definem com graça e precisão o ofício do roteirista.

(Eu terminei o post e acrescento este segundo parágrafo porque acabo de perceber que o título e o texto remetem a alguma coluna do Paulo Coelho; há um clima de sabedoria, oriente e homem versus natureza. Foi sem querer. De qualquer maneira, isso foi bom. Lembrei que a editora Master Books publicou o roteiro do filme Não Pare na Pista – A Melhor História de Paulo Coelho, de Carolina Kotscho. Apesar de não gostar do longa, recomendo a leitura do texto, principalmente porque mostra o quanto o mercado está se aquecendo com essa história de notificar a existência de roteiros e roteiristas. Voltaremos a falar disso em breve.)

No livro Creativity, Inc., de Ed Catmull (um dos pais da Pixar e presidente da Disney Animation) e Amy Wallace, há uma passagem em que o autor narra uma conversa com Michael Arndt, roteirista de Toy Story 3.

Arndt compara o ato de escrever o roteiro com uma escalada de olhos vendados. Para ele, o primeiro passo é achar a montanha. Ele explica que assim você precisa sentir qual é o caminho certo, tatear as escolhas e deixar que a montanha se revele.

Notavelmente, Arndt acrescenta, escalar não significa somente subir. Muitas vezes você tem que recuar um pouco, dar uns passos para trás, descer, tomar fôlego e aí voltar a mirar o topo.

Sem dúvida é uma boa figura de linguagem.

Catmull também gosta bastante da imagem, mas implica com uma coisa: quem disse que a montanha existe?

Na metáfora de Arndt, o roteirista transfigurado no esportista cego sabe que o seu tema, a sua história, está ali, escondida. Basta ele dar os passos certos para encontrar sua montanha.

Porém, Catmull diz algo mais ou menos assim: “Se escrever um roteiro é como escalar uma montanha com os olhos vendados, isso significa que o objetivo é enxergar uma montanha – enquanto eu acredito que a verdadeira meta das pessoas criativas é construir sua própria montanha para subir”.

Bom, não? Em resumo, Catmull tenta enfiar diariamente na turma da Pixar, lá nas redondezas de San Francisco, essa eterna curiosidade em criar montanhas – e não apenas desvendar montes (que já é uma tarefa complicadíssima, mas, convenhamos, menos genial).

Talvez o que eu queira dizer com tudo isso é que nós, roteiristas vendados, ao começar uma escalada precisamos sentir se aquela montanha vale a pena ou é melhor criar outra, muito mais propícia para nosso talento.

Infelizmente, tem muita gente por aí arrancando a venda e partindo com tudo para subir num formigueiro vagabundo, de poucos centímetros. E ainda acha que se esforçou.

Pior: você, roteirista de olhos fechados, ainda terá que suportar diversas armadilhas colocadas no caminho por uns sujeitos que acreditam que a montanha também é deles.

Agora percebo que a metáfora realmente se encaixa com perfeição. Muitas vezes você fica ali, criando ou tentando encontrar sua montanha, e quando finalmente começa a subida, topa com um monte de turistas acampados, falando alto e sujando todo o seu trabalho.

E como eles chegaram ali? Geralmente de 4×4, por um atalho picareta, e se acham donos do pedaço. Aí sua tarefa aumenta de tamanho: além da escalada, tem que convencer a todos que você viu/criou aquela montanha primeiro e tem certas prioridades.

Há um bom reality show (ou game show) em exibição nos Estados Unidos atualmente – e eu sei que “bom” ao lado de “game show” é paradoxal e confuso. Chamado The Chair (mais detalhes aqui), mostra a competição entre um diretor e uma diretora de cinema. Ambos recebem o mesmo roteiro e verba e devem realizar um filme. Que tipo de visão pessoal eles conseguem colocar numa obra alheia? Será que um mesmo roteiro gera filmes tão diferentes?

O primeiro episódio é sensacional para quem escreve. Acompanhamos a indignação do roteirista com os palpites e mudanças dos diretores e como o roteiro vira picadinho no processo de produção (mesmo quando destroçar a coisa não faz parte do jogo).

Então, acrescentando algumas coisinhas ao conceito de Arndt, escrever um roteiro muitas vezes é como escalar uma montanha de olhos vendados e, após chegar ao topo, levar uma baita rasteira e descer rolando.

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