Falando sozinho em “Império”: uma teoria

hamlet-laurence-olivier-william-shakespeare-cinema-teatro-dinamarca1

São 21h47 de uma quarta-feira e enquanto espero o jogo do Corinthians, ligo a TV e enfrento mais um capítulo (ou episódio, não acho que só série tem episódios) de Império, a novela das nove de Aguinaldo Silva.

Tento desesperadamente comprovar uma tese: os personagens das tramas de Aguinaldo são os que mais falam sozinhos da história recente da teledramaturgia brasileira.

Eu sei, uma dissertação que mereceria mestrado, doutorado e outros títulos. Infelizmente, só tenho alguns minutos e pimba: Paulo Betti, que interpreta o blogueiro Téo, começa a comentar para ele mesmo a reportagem que está escrevendo. Apesar de outra pessoa estar na sala, ele continua a conversar com o próprio encanto.

Foi muito fácil corroborar a minha hipótese. Estava com essa intuição desde que acompanhei as primeiras semanas da novela para entrevistar o ator Alexandre Nero. Lá estava a turma toda traçando planos, explicando a trama, xingando inimigos, lambendo os beiços de satisfação, mandando recados etc.; tudo para um espelho imaginário, para uma plateia difusa, sem interlocutor, como se o mundo fosse de fato um palco.

Não acompanho os folhetins, portanto não sei o quanto os outros autores usam esse recurso. Mas Aguinaldo gosta disso, não? Foi só coincidência eu pegar justamente esses trechos?

Portanto, comecei a escrever alguma coisa sobre essa história e me peguei gritando para as paredes: “Ei, eu já escrevi alguma coisa assim. Já mesmo. Quando foi? Ué, na última novela dele… Sim! Alguma coisa de estampa, não era? Também tive que assistir para fazer um perfil da Adriana Birolli e fiquei impressionando com os solilóquios. Solilóquios? Eu escrevi isso? Eu preciso de um dicionário. Mas então? Onde está esse texto? Se é que um dia eu publiquei alguma coisa assim”.

E aqui termino a transcrição porque fui pegar mais bebida, continuei dialogando com ninguém e quase perdi o jogo do Timão (ganhamos do Cruzeiro).

Mas achei o textinho. Eu realmente já falei sobre isso. Melhor ainda: acabo de encontrar outra tese óbvia ululante; é só eu trocar Fina Estampa por Império, extirpar os personagens e pronto, já tenho um novo artigo.

Não acredito que novela é tudo igual, mas algumas são mais iguais do que outras.

Fazendo alguns pequenos remendos, este texto ficou assim:

*

Pode ser coincidência, mas todas as cenas que vi da novela Império traziam personagens fazendo solilóquios em voz alta. Todo o núcleo duro da novela fala sozinho – e bastante. Basta ficarem alguns segundos sem companhia para soltarem suas angústias, pensamentos e dúvidas.

Diante de tal recorrência – e da inteligência do autor do folhetim, Aguinaldo Silva –, calculo que tal recurso é proposital.

Qualquer manual chinfrim de roteiro desaconselha o uso de “pessoas que contam a história em voz alta”. Além de diminuir o realismo da cena, incomoda o público pelo didatismo e por remeter a uma obra teatral – e denota preguiça do autor, convenhamos.

Sabemos que em algum momento qualquer pessoa tem o soberano direito de conversar com fantasmas e bancar o Chico Xavier. Mas como ter a santa paciência de acompanhar uma novela em que todo mundo fala sozinho? Pior: não são interjeições ou pequenos desabafos como “sujeitinho desgraçado”; a turma de Império às vezes manda ver um Shakespeare completo, comentando o que pensam sobre determinado assunto, como vão realizar um plano mirabolante ou o que acham da vizinha mocréia.

O meio audiovisual vem se debatendo desde o começo do século passado com a questão da encenação das motivações psicológicas dos personagens. Tal conflito foi bem resolvida pela literatura e, sobre o assunto, vale escrutinar o capítulo Breve História da Consciência, do livro Como Funciona a Ficção (Cosac Naify), de James Wood.

Mas graças aos recursos técnicos – edição, principalmente –, o cinema deu um passo em relação ao teatro ao conseguir detalhar de tal maneira a cena que imediatamente mergulhamos no pensamento da personagem.

O jeito de morder o lábio, um olhar, a imagem de uma arma sendo disparada logo depois do marido olhar com ódio para a mulher etc. formam o infinito cartel de possibilidades de contarmos uma história – inclusive somente mental – para o público de uma obra audiovisual.

Ou então, na ausência de um companheiro, um poste, um qualquer para relatar seu drama e fazer a história avançar, o personagem usa um cachorro, um objeto – vale tudo para não falar sozinho.

tintim

Steven Spielberg faz bastante isso nos primeiros minutos de As Aventuras de Tintim. Chega a ser irritante a forma contundente como Tintim relata todas as suas angústias para o cachorro Milu. Na verdade, o cachorro está ali para dar graça e deixar o “falando sozinho” mais simpático.

Na hora de escrever uma cena em que precisamos desconfiar que Fulano irá se rebelar contra alguém ou está planejando determinada situação, o roteirista dá dicas para a audiência. Porém dificilmente colocará no papel algo como: “Fulano fica sozinho e diz em voz alta: ‘Bom, então hoje é segunda-feira, lá vou eu trabalhar num lugar que detesto e encontrar Seu Pafúncio, meu chefe desde 1983 e pessoa irritante. Ainda me lembro como se fosse hoje quando ele jogou café quente nas minhas calças cargo”’. Chato, porque não fazemos isso. Ou melhor, fazemos às vezes.

Em Império, eles fazem a todo instante. Por quê? Acredito que Aguinaldo Silva, um estudioso de roteiros, quis realizar uma novela limpa, claríssima, divertida e caricatural. Com suspense, mas não misteriosa. Com dramas, mas não dramática. Engraçada pela farsa e não pela crítica.

Portanto, nesse teatrão, o público observa a vida privada de cada um. Não há segredos para a platéia. Os personagens são servos da audiência, dizendo em voz alta suas motivações e desejos, como num espetáculo teatral convencional.

Claro que Aguinaldo aplica um ritmo intenso na sua narrativa. Muita coisa acontece em todos os capítulos. E essas mudanças são anunciadas via imprensa, via comercial e via personagens.

Cada personagem é o propagandista de si próprio. Ele mesmo anuncia: “vou pegar aquela megera!”.

Todas as novelas usam muito esse discurso narrativo (falar sozinho). Os motivos: é necessário reafirmar a intenção da ação, pois o público está disperso; são mais de duzentos capítulos de meia hora cada um, é complicado mergulhar profundamente nas intenções dos personagens numa única cena esplendidamente trabalhada; o ritmo da produção é insano, não permitindo milhares de sacadas visuais e uma direção criativa; muitas vezes o autor precisa encher lingüiça.

Porém, Aguinaldo Silva acrescenta mais um motivo. Num mundo cada vez mais gritado, anunciado, onde todos parecem estar vivendo em público, como numa novela, nada mais natural do que falar sozinho, como se estivéssemos diante de uma câmera/platéia.

Aguinaldo capta um novo realismo das novelas, onde ele assume que o mundo é enfim um roteiro de dramaturgia, em que somos personagens em busca de uma audiência.

Talvez as pessoas estejam cada vez mais falando sozinhas, esperando o diretor gritar “corta” e loucas para ver como foi a sua atuação no dia-a-dia.

2 comentários em “Falando sozinho em “Império”: uma teoria

Adicione o seu

  1. Na minha humilde opiniao virou PASTELAO, fica irritante, parece um bando de louco, alias o SALVADOR apesar de suas loucuras nao fica narrando. Ainda bem que posso curtir ‘A VIAGEM’ no VIVA.
    Adorei sa materia.

    1. Pois é, parece ser inevitável: quanto mais usam esse recurso, mais a obra vira comédia involuntária (ou voluntária, pois o texto do Aguinaldo sempre é muito escrachado). De qualquer maneira, faz muito tempo que não vejo Império. Abs e obrigado pela leitura.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑