Na introdução de What If? (que a Companhia das Letras deve lançar no Brasil como E se?), Randall Munroe, o autor do livro, explica que ao tentar responder algumas perguntas idiotas, você pode parar em lugares interessantes.
Toda a obra é baseada em questões hipotéticas e absurdas enviadas pelos leitores do site xkcd. Munroe, formado em robótica que já trabalhou para a Nasa, responde cada uma delas usando ciência, fatos e quadrinhos. Esse choque gera o interesse e descobertas curiosas.
Assim, quando alguém pergunta o que aconteceria se a Terra e todos os objetos parassem de girar, mas a atmosfera, não, enveredamos para uma divertida aula sobre os movimentos do universo.
Além disso, os quadrinhos feitos por ele são obras-primas da síntese e do humor nerd (aqui alguns trechos já traduzidos pelo Blog da Companhia).
Creio que essa bizarra equação de colocar coisas em lugares estranhos e fazer perguntas cretinas ajudam muito na hora de construir uma boa cena num roteiro (demorei, mas cheguei no tema deste blog).
O diretor e roteirista Felipe Braga falou algo parecido num divertido debate entre escritores durante a 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Abro uma digressão para comentar a importância do uso do adjetivo “divertido” no parágrafo anterior. Estamos acostumados a escutar encontros de roteiristas e confundir esses eventos com uma sessão de terapia em que os debatedores reclamam da falta de dinheiro, estrutura, espaço e reconhecimento (tudo verdade, por sinal). Não foi o que aconteceu no Itaú Cultural (quer dizer, até rolou, mas como anedotário). O papo foi descontraído e engraçadíssimo. Talvez porque o argentino Fernando Castets fale no ritmo como escreve, injetando piadas, boas histórias e partes sérias na mesma medida; ou por causa do mexicano Guillermo Arriaga, que em determinado momento simplesmente desistiu da conversa e ficou se esticando no palco e fazendo malabarismos com uma cadeira; ou ainda pela tarde inspirada do brasileiro Marcos Bernstein, que não deixava passar uma deixa; ou pelas risadas da platéia, que formavam uma bela claque. Fato que o negócio foi bem bacana. Fim da digressão.
Voltando ao Felipe Braga: em determinado momento ele comentou que gosta de ficar mexendo numa cena, pensando o que pode acontecer para ela ficar mais interessante ou dinâmica, buscando alternativas e reescrevendo as palavras – até mesmo colocando situações absurdas, só pra ver o que rola.
Pois bem, quando finalmente vamos escrever uma sequência, tudo gira em torno da pergunta “E se?”.
No início, vale tudo. Temos apenas a informação de que X deve ocorrer. Aí a brincadeira começa. Quais os personagens devem estar presentes? E se eu mudar de local? E se eu mudar de personagens? E se eu mudar de informações? E se eu colocar uma maçã na mão daquele ali? E se aquele outro não falar nada? E se alguém chegar atrasado? E se eu escrever a cena de trás pra frente? E se eu acabar a cena antes? E se eu começar com a cena depois?
Como diz o ditado: “Uma cena é igual a uma festa. Você não pode ser o primeiro a chegar nem o último a sair. Há o momento correto de começar e a hora certa de dar no pé”.
Isso é um ditado? Bom, não importa. Gosto dessa ideia de pensar numa cena como uma festa. Todo o tempo que estivermos lá, teremos que nos divertir.
Aqui há onze dicas de John August sobre como escrever uma sequência. Aprecio muito esses exemplos e pensamentos. Eles nos estimulam a brincar com a cena, pegar os personagens com as calças curtas, experimentar de tudo, cutucar mesmo os átomos do órgão. Afinal, se um filme é um corpo, cada uma de suas cenas representa um órgão (que não precisam ser diferentes, há filmes “só coração”, por exemplo).
Neste ano, um dos longas mais interessantes nesse sentido (o de como brincar com uma cena) é O Pequeno Quinquin, de Bruno Dumont – curiosamente uma das melhores séries do ano também*, já que foi exibido na TV da França em quatro episódios.
Que maravilha observar cada uma das sequências, com seus closes (o painel mais fascinante de rostos em anos), paisagens e ações inusitadas.
Como todos mencionaram, é uma espécie de Twin Peaks hilário.
Uma cena em especial é exemplar: o funeral de uma das mortes relatadas no filme (resumo: começam a encontrar corpos humanos dentro de vacas numa pacata cidade do interior da França).
Acompanhamos desde o momento em que o padre se veste até a saída para o enterro. São longos minutos engraçadíssimos porque tudo parece fora de lugar, porque Bruno Dumont (também autor do roteiro) deve ter feito muitas perguntas idiotas na hora de escrever cada movimento.
Filmaço. Seriaça.
*Ok, mais uma série que mencionei como a melhor do ano. Vou escolher de fato a melhor quando este 2014 acabar.
