Agora foi a vez do colunista da Folha Ricardo Melo. Em um de seus artigos, ele escreveu: “que roteirista pensaria num enredo em que um cachorro vira celebridade e recebe medalha da mais importante Câmara Municipal do Brasil?”.
Eu respondo: qualquer um que seja bom. Afinal, roteiristas fazem isso, criam e contam histórias.
Eu pergunto: que político pensaria num enredo em que uns malucos perseguem outros no deserto enquanto são acompanhados por um primo do Kiss tocando guitarra num carro alegórico? Ou que deputado pensaria numa história em que Hitler é assassinado dentro de um cinema?
Eu já escrevi isso aqui algumas vezes, mas esse papo é uma das minhas obsessões. Até quando vão comparar ficção com mundo real e dizer que nós, pobres escribas, estamos perdendo feio para o que acontece lá fora?
Em seu texto, Ricardo Melo arrisca alguns palpites sobre a crise na dramaturgia (especialmente nas novelas). Segundo ele, “a vida real tem sido muito mais impactante para quem procura o exótico, o inusitado, o imprevisível, o absurdo”.
Será? Como diria aquele outro, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. É só dar uma olhada no Netflix ou nas salas de cinema e garanto que você vai encontrar muitas imagens exóticas, absurdas e imprevisíveis.
Quando foi que aposentaram de vez aquela bonita frase: “A vida imita a arte”? Hoje, todo mundo só recita o mantra: “A arte não é tão criativa quanto a vida”.
Não consigo engolir com facilidade essa brincadeira. E tento não ser proselitista – nem pegar no pé do jornalista, um dos lúcidos num jornal cada vez mais estranhamente conservador.
Mas acredito que a culpa também é nossa. Ficamos calados toda vez que escutamos uma barbaridade dessas, como se nossas invenções fossem desprovidas de qualquer interesse.
Não sei por que resolveram inverter essa equação. Acredito que muitas das coisas que estão rolando por aí só existem justamente porque filmes, séries e livros vieram primeiro.
Os roteiristas explodem prédios há muito tempo. Mas aí o Bin Laden faz o show dele, e todo mundo diz que “nenhum roteirista poderia imaginar…”. Mas tinham pensando em coisas bem piores!
Talvez o problema atual do mundo seja esse; estamos dando muita importância para o real e desprezando as loucuras da imaginação.
E vou contar outra coisa, está cada vez mais difícil criar qualquer negócio neste planeta, porque a quantidade de informações, séries, filmes e livros é monstruosa. E não podemos copiar nada, sempre tendo que ser originais e criativos.
Desculpem, mas temos que ser bem mais divertidos e interessantes do que a vida.
Exemplo: você vai pedir uma pessoa (ou animal, tanto faz) em casamento. Por mais que pense numa maneira super incrível e inédita, acaba caindo no tradicional “anel na sobremesa” ou “jantar super romântico com música ao vivo” ou ainda “no meio do estádio durante um jogo do Palmeiras”. Beleza. As coisas acontecem assim na vida real, do jeito que dá.
Mas, num roteiro, quando vou escrever uma cena assim, provavelmente vou me ferrar muito, porque necessariamente tenho que ser diferente, chamar sua atenção, mudar paradigmas, caprichar mesmo e mostrar que sou o tal.
Porque sempre temos que superar a vida real e todos os outros roteiristas que vieram antes de nós. Não está fácil pra ninguém.
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Para compensar o fato desse artiguinho ser um deslavado puxa-saquismo da “arte do roteiro”, um dos melhores filmes do ano simplesmente não tem roteiro algum. Aqui explicam como George Miller conduziu seu novo Mad Max usando storyboards (e anula também meu exemplo no terceiro parágrafo).

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