Os críticos

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Confissão: quando eu era adolescente, sonhava em me tornar crítico de cinema. Na verdade, eu queria virar o Rubens Ewald Filho. Não conseguia imaginar nada melhor do que passar o dia inteiro vendo filmes e depois escrevendo sobre eles. E ainda decorar os nomes de todos astros e estrelas para fazer a transmissão do Oscar na Globo (que eu assistia também solenemente, de calça jeans, camisa e acompanhado por garrafas de Tubaína). Durante anos fazia uma disputa com o crítico, tentando falar antes os nomes dos artistas que apareciam nos clipes da festa. Perdi todas, claro.

Sim, eu achava essa vocação bem constrangedora. Era impossível sair por aí e mencionar essa paixão (acho que hoje deve ser pior ainda). O tio querido se aproximava na festa de natal e falava: “E aí, Andrezinho, o que vai ser quando crescer?”. Eu me retorcia inteiro, fazia umas embaixadinhas com a bola do próximo jogo no campinho e cravava: “veterinário”. Pronto, felicidade geral da nação (até porque todas as festas aconteciam num sítio com vacas, galinhas, bois, cachorros, gatos e toda uma fauna que naturalmente precisaria de ajuda algum dia).

Assim eu deixava minhas pretensões queimando em fogo brando. Afinal, o que eu deveria cursar para ser crítico? Como explicar para os parentes que eu simplesmente visualizava um futuro em que eu ficaria o dia inteiro dentro de uma sala de cinema? Por isso, desde cedo fui próximo dos meninos da nouvelle vague. Truffaut era o meu alvo. Como ser “apenas” crítico parecia meio boboca (e já tínhamos o Rubens), pensei que começaria a carreira nos jornais, distribuindo estrelinhas e conceitos como “esteticamente elaborado, mas sem força no terço final” e depois entraria para o ramo, dirigindo e escrevendo minhas próprias películas.

Portanto, desde os 12 anos, eu exercitava minha verve e espalhava toda minha sapiência adquirida em mais de uma década de vida (considerando que eu lembrava até dos tapinhas que o doutor Fausto deu na minha branca bunda assim que saí do refúgio materno). Resenhava e criticava todos os filmes que via. Anotava em cadernos, escrevia a ficha técnica, fazia uma ilustração e descaradamente imitava o estilo daqueles guias que o Rubens publicava.

Até hoje guardo dezenas dessas relíquias. Creio que são quase dois mil filmes devidamente pensados e registrados. Lendo hoje essas insanidades, sou assaltado por uma mistura de pena e nostalgia (tá, dou muita risada).

Foi a maneira que encontrei de compreender e salientar minha paixão pelos filmes. Ser “crítico” foi a porta de entrada para minha cinefilia e orientou o que sou hoje (roteirista).

Para usar o clichê, não é segredo pra ninguém que quase todos os profissionais dessa área são recebidos com “só gosta de filme de arte, buuuu” entre parte da plateia no Brasil. Uma pena.

Quase não existe mais imprensa, quanto mais críticos publicando em jornais e revistas. Pelo menos ainda é possível me agarrar aos nomes que acompanho desde sempre, como Rubens, Merten no Estadão e o Inácio Araújo na Folha (sem contar o Sérgio Augusto, Ruy Castro e ensaístas de modo geral). E temos os blogs e revistas eletrônicas, claro. Mas aí entramos num outro papo porque o assunto aqui é a imprensa considerada tradicional.

malala

Essa pequena reminiscência surgiu por dois motivos interligados por horas de diferença apenas.

Começou quando li esse texto do Ricardo Calil sobre o ótimo documentário Malala, de Davis Guggenheim. Achei tudo bem esquisito (principalmente porque geralmente respeito as opiniões e texto do autor). Além de não falar do filme, das imagens e questões que a obra coloca (a estrutura do documentário é interessantíssima), Calil parece se sentir humilhado pela forte presença de Malala. Vejam esses dois parágrafos finais:

“Aos 18 anos de uma vida impoluta, Malala não parece disposta a revelar outros conflitos no documentário.

Ela é um enigma de bondade que o filme não consegue decifrar. Ao contrário de Malala, nós, espectadores, não somos santos.”

Bem, ela foi baleada na cara porque defendia o direitos das mulheres estudarem; seguiu sendo ameaçada; teve seu corpo violentado por ter opinião; passa a vida discursando contra o obscurantismo e conhecendo movimentos políticos de igualdade de gêneros. Num mundo cercado pela hashtag #AgoraÉQueSãoElas e os atentados do Estado Islâmico em Paris, Malala revela conflitos até demais. O que mais Calil queria?

Ele exige que Malala tenha falhas; ou pelo menos parece comentar que o documentário não é “muito bom” porque o diretor não encontrou o “lado ruim” da sua protagonista. Ok, mas devagar aí. Uma adolescente com a história de Malala pode ser uma pessoa boa, não? Isso faz da história dela dramaturgicamente ruim? E essa menção ao “não somos santos”? O que aconteceu nesse final?

Fiquei confuso e esqueci. Mas no dia seguinte, vi esse artigo do Matt Zoller Seitz sobre uma provocação publicada pelo ator Jesse Eisenberg na New Yorker.

Resumindo: Jesse escreveu a história de um crítico de cinema ressentido que detona um filme apenas porque ele gostaria de ter o sucesso que aquele diretor conseguiu. A velha ideia do crítico como cineasta frustrado.

Matt brilhantemente escuta alguns talentos do ramo e faz um belíssimo – e pequeno – ensaio sobre o que é ser crítico e como pode haver falhas crucias também nesse processo (o de análise de uma obra). Às vezes, só estava chateado com sua namorada e acabou dando bola preta pra uma comédia razoável porque simplesmente o amor não significava nada pra você naquele dia.

Lendo o que Matt fala sobre seus próprios erros, a gente entende muito melhor cada resenha, cada estrelinha, cada “não somos santos”. A única coisa que jamais vou compreender é porque ainda publicam críticas com frases banais como “esse filme deveria ser proibido para quem tem diabetes”.

Enfim, uma leitura fundamental para quem ainda lê e escreve crítica de filmes.

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