O super-herói dos roteiristas

 

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E quando a gente menos espera, dois filmes em cartaz celebram os roteiristas. Trumbo, de Jay Roach, já é um dos dez melhores longas de 2016 simplesmente porque hoje estou com vontade ser corporativista. A obra é corretinha, um filme B que não ofende ninguém. E isso pode ser muito agradável numa noite qualquer. Sem mentira nenhuma: a plateia até mesmo aplaudiu efusivamente quando a sessão terminou, demonstrando o apreço que sentiram pela história. Muito mais culpa dos ideais do protagonista (e da interpretação de Bryan Cranston), claro, do que pela levada caretinha, didática e meio capenga da direção.

Mas como não aderir a esse super-herói dos roteiristas? Dalton Trumbo (1905-1976) sempre foi um dos meus queridinhos. Sua histórica foto (tirada pela filha dele) escrevendo na banheira é o resumo perfeito da capacidade criativa desse sujeito que tinha lá suas esquisitices e problemas (e quem não tem?), mas sabia usar como ninguém um bom bigode.

Trumbo se tornou o personagem emblemático desse período aviltante da cultura norte-americana chamado de “caça às bruxas”. Está nos livros. Em 1947 seu nome apareceu ao lado de centenas de outros artistas (diretores, atores, escritores) numa espécie de lista maldita. Todos foram acusados de tentarem transformar os Estados Unidos num país vermelho, comunista. Para o Comitê de Atividades Antiamericanas, essa turma era contra os tradicionais e democráticos valores da América de Donald Trump (não era bem isso, estou apenas fazendo uma associação besta, mas você entendeu).

Membro do partido comunista, Trumbo nem pensava em ser black bloc ou invadir a Casa Branca para colocar um busto de Stálin no Salão Oval. Apenas tinha opiniões sobre como as coisas poderiam melhorar para os trabalhadores.

Pobreza e má distribuição de renda eram questões sérias pra ele (eu sei que deveriam ser para todos, mas parece que tem gente meio nem aí pra isso). Até os 30 anos, ele literalmente amassou o pão que o Diabo produziu. Durante sete anos, já na vida adulta, trabalhou intensamente numa padaria na Califórnia. Nos intervalos dos turnos, escrevia romances, contos e histórias, além de comandar greves e reivindicar melhores condições de trabalho.

O bichinho sempre foi turrão. Arrimo de família, batalhava intensamente pelas coisas que desejava (a história de como convenceu Cleo a se casar com ele é por si só um filme). Seus escritos começaram a ser publicados em revistas e ele largou a padaria para trabalhar com roteiros nos grandes estúdios (primeiro apenas como leitor e avaliador, depois virou roteirista de filmes classe Z).

Enfim, Trumbo foi muito, muito pobre (e estamos falando aqui em pobreza nos anos 30, durante a Grande Depressão, meio Brasil há 20 anos). Por isso se engajou politicamente.

Bom, fato é que em 1950 ele e mais nove artistas de Hollywood foram presos por desacato ao Congresso e por serem comunas.

Depois que saiu da cadeia, começou a trabalhar no mercado paralelo, assinando seus roteiros com pseudônimos e arranjando trabalho para todos aqueles que estavam na mesma situação (na lista negra de Hollywood).

O que aconteceu? Em dez anos ele ficou rico, ganhou dois Oscar, escreveu a obra-prima noir Gun Crazy, empregou dezenas de amigos e ajudou a transformar a tal lista negra em chacota.

O que mais me agrada no filme Trumbo é a dessacralização da profissão de roteirista. Não são abnegados ou escolhidos por Deus que escrevem filmes maravilhosos. São pessoas que precisam pagar as suas contas (e escrevem bem).

No final de tudo, sigam o dinheiro, camaradas. Quem não gosta de receber uma bolada para fazer o que gosta? Olha aí, talvez esse seja o sentido da vida.

Para batucar um roteiro, você precisa de três coisas (na ordem): vontade, técnica e criatividade. Trumbo tinha tudo isso em doses cavalares (uma mais que a outra, às vezes). Como ele mesmo afirmava, não era o melhor roteirista de Hollywood, mas era o mais rápido (e isso também importa).

Além de cultivar uma intensa fibra moral e escrever incontáveis filmes e histórias, concebeu um dos grandes livros de todos os tempos sobre a estupidez da guerra. Johnny Vai À Guerra de fato traz uma prosa brilhante. Trumbo dirigiu a adaptação para as telas em 1971.

Dito tudo isso, vale ainda mencionar que a biografia escrita por Bruce Cook e lançada agora no Brasil pela Intrínseca é sensacional. Chato demais falar essas coisas, mas é obrigatória para qualquer roteirista. Cook não apenas narra as aventuras de Trumbo, como também conta o processo de escrita desse livro-reportagem. Um desbunde. Ao final do livro, você só pensa em comprar uma banheira e escrever roteiros.

(Em tempo: o roteiro de Trumbo foi escrito por John McNamara, que vem da TV.)

Ah, e o outro filme? Sim, Deadpool, claro. Dirigido por Tim Miller e escrito por Rhett Reese e Paul Wenick, o treco é divertidíssimo. Mas por que exalta os roteiristas? Aí vocês têm que descobrir. É só ver o filme e prestar atenção aos créditos iniciais. O longa é muito mais um stand-up de Ryan Reynolds do que um longa de ação com fantasiados tentando salvar o mundo. Ainda bem.

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