Até o capítulo 20 e tantos, a reprise da novela Vale Tudo pelo canal Viva (36 na Net e 37 na Sky) promoveu um resgate não apenas do excelente texto de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, mas também da luminosa atuação de Daniel Filho.
Seu personagem, o pianista Rubinho, parece um hipopótamo na Lua. Ele tem um peso, um drama intenso. Seu corpo carrega litros de álcool, fumaça e desilusões.
Porém, quando toca nas teclas, sua presença é capaz de radiar uma singela leveza, deixando no ar certa esperança para quem pretende vencer apenas pelo talento.
Semana dessas, uma cena com Rubinho foi especialmente moderna e vigorosa, mostrando a ousada direção de Denis Carvalho e Ricardo Waddington.
Enquanto tomava seu uísque nas pedras, o músico explicava porque queria se mandar do país. Para ele, os brasileiros não incentivavam as artes e os artistas nacionais.
O exemplo óbvio era Tom Jobim, que na época surgia como uma espécie de mártir reverenciado lá fora, mas tratado com o chicote do desprezo pelo seu próprio povo.
Logo após o desabafo, Rubinho sai da mesa e anda pelo deck (ele está em Búzios) do hotel onde trabalha.
E o que acontece? Um clipe. Alternando a caminhada de Daniel Filho e imagens de Tom Jobim, a novela pára e exibe três minutos de música, poesia e homenagem.
Uma quebra na narrativa, algo completamente esquisito e encantador. Depois descobrimos que seria uma merecida despedida do brasileiro Rubinho, que na sequência sai de Vale Tudo e morre sem atingir o sucesso.
Rubinho simboliza a melancolia e a tragédia de quem pretende viver de arte no Brasil e reflete com precisão a pergunta fundamental que regeu a novela.
Exibido pela primeira vez entre 16 de maio de 1988 e 6 de janeiro de 1989, o texto de Vale Tudo investe num competente dramalhão, mas não esquece os comentários sociais e diálogos poderosos.
Além do suspense (que, na verdade, durou míseros 13 capítulos) com a morte de Odete Roitman, do Paladar de Raquel Accioly, das sacanagens de Maria de Fátima, da banana de Marco Aurélio, dos porres de Heleninha, Vale Tudo guarda surpresas em muitos episódios (eu não lembrava do Rubinho e das lésbicas da pousada, por exemplo).
E de onde veio tudo isso? E por que esse repentino sucesso mais de 20 anos após a primeira exibição?
Um trecho da entrevista com Gilberto Braga, autor da novela, no livro Autores – Histórias da Teledramaturgia (editora Globo) ajuda a entender como surge uma idéia que pode alimentar um país por mais de 200 capítulos:
“Vale Tudo surgiu de uma discussão familiar. Eu estava jantando com os meus parentes mais próximos, e alguém chamou meu padrinho de medíocre e babaca. O meu padrinho, irmão da minha mãe, era delegado de polícia, como meu pai, e sempre foi conhecido como um policial não-corrupto. Disseram: “Ah, ele foi delegado em Foz do Iguaçu e Belém, e poderia estar rico. Todo mundo que foi delegado nesses lugares tem apartamento na Vieira Souto, e ele não tem nada, é pobre”. Eu questionei: “Mas que critério é esse? Isso não é ser babaca. Ele tem uma vida digna. Tenho muito orgulho de ele não ter se corrompido”.
Vale Tudo nasceu dessa discussão, da figura do meu padrinho e da distorção – presente em praticamente todo o país – dos que acham que quem não é corrupto é babaca. Foi a única novela em que, antes de ter a história, eu já tinha a temática. Eu queria fazer uma novela sobre o seguinte assunto: “Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?”. Foi uma novela muito didática. A discussão já estava lá no primeiro capítulo, numa cena da Maria de Fátima, personagem da Glória Pires, discutindo com o avô.”
Pelos índices de audiência, a pergunta que foi a gênese de Vale Tudo ainda está se arrastando por aí.

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