Num país (o Brasil) pródigo em assuntos e personalidades musicais, é de se estranhar a falta de mais cinebiografias de artistas do meio. Romancear em cima da vida de alguns músicos – principalmente os já mortos – poderia ser um formato próspero do cinema brasileiro.
Cazuza – O Tempo não Para (2004) e Dois Filhos de Francisco (2005) parecem ser ainda os exemplos mais recentes que combinam sucesso de público e certa delicadeza artística. É pouco. Certo que os cineastas nacionais encontraram no documentário uma boa maneira de desovar suas idéias sobre as canções; há perfis para vários gostos, indo do pop (Titãs, Mamonas Assassinas, Herbert Viana) à nata da MPB (Novos Baianos, Jards Macalé, Itamar Assumpção, Cartola), passando por importantes movimentos (Festivais da Record, Dzi Croquetes).
Mas na hora de mexer com a ficção e brincar um tanto com o gênero, há uma barreira. De vez em quando surge um Bressane para jogar luz de uma forma poética e divertida em cima da vida de Mário Reis (O Mandarim, 1995). Mas a princípio parece ser impossível assistirmos a uma obra cinematográfica que dê conta do turbilhão de Tim Maia (vem filme por aí) e Carmen Miranda; ou que use de inventividade para explorar a biografia de Tom Jobim; ou que narre apenas a juventude de João Gilberto (ou sua existência dentro de um banheiro).
Assim, Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres, de Joann Sfar, deve ser visto e revisto como bom exemplo de um longa-metragem com qualidades suficientes – e criatividade – para dar conta de uma instituição musical.
Curiosamente, a França também produziu recentemente Piaf – Um Hino ao Amor (2007), supra-sumo da caretice, resumo de como fazer uma cinebiografia convencional, clássica e entediante. Como mérito, lançou Marion Cotillard para a fama.
A obra de Sfar tem muito mais a nos mostrar e, por que não, ensinar. Em vez de ser didático e se ater a fatos essenciais da vida do compositor, cantor, ator, diretor, escritor e fumante de Gitanes Serge Gainsbourg, o filme resolve ser tão contraditório quanto seu personagem principal. Por isto, coloca em cena dois Serges, o Gainsbourg (introspectivo, tímido, gênio das artes) e o Gainsberre (uma espécie de alter ego destrutivo, beberrão, megalomaníaco).
Há duas coisas que a gente deve saber sobre Serge: que ele era um paradoxo ambulante, alternando sua personalidade conforme a quantidade de álcool (doses de pernod quando acordava), cigarros (de três a cinco maços por dia) e trepadas (que poderiam ser pedidas até mesmo na TV, ao vivo, para uma jovem Whitney Houston); e que teve relacionamentos intensos com as mulheres mais deslumbrantes de sua época, o que o impulsionou para criar as melhores músicas francesas da segunda metade do século passado.
E essas duas coisas o filme resolve brilhantemente, deixando seu elenco interpretar (e não imitar) os perfis reais e focando a história em meia dúzia de cenas bem resolvidas – méritos também da absurda presença em cena de Eric Elmosnino. Talvez estejamos desacostumados com cinebiografias que se mostrem tão fortes visualmente quanto na fala.
Sfar realiza algumas proezas ao narrar de forma muda o pequeno Serge tentando olhar uma mulher que posa nua; ou quando explora as curvas de Brigitte Bardot (aqui, a provocante Laetitia Casta).
Como uma ópera, para aproveitar ainda mais a música e as encenações de Gainsbourg…, vale a pena ler Um Punhado de Gitanes (Barracuda, 2004), de Sylvie Simmons, que serve como um libreto. Lá sim, em ordem cronológica e empolgante, acompanhamos trabalhos, datas, fofocas e histórias do músico.
No filme, o que nos basta é ficarmos curiosos com aquela personalidade sedutoramente horrível. E sim, sentirmos tesão pelas suas conquistas amorosas e musicais.
Serge é um personagem que se presta a diversos filmes. Inseguro, nervoso e engraçado, compôs a música mais polêmica da língua francesa (Je T’Aime, Moi Non Plus), fez incontáveis versos poéticos e com diversos sentidos (o que dificulta sua tradução para fazer sucesso também em inglês) e se viu no meio de grandes enrascadas ao transformar o hino da França em reggae (na deliciosa Aux Arms Et Etcaetera), queimar dinheiro em um programa televisivo e estrelar, numa cama, um esquisito dueto de amor com a filha Charlotte – então com 13 anos.
Não faltavam bizarrices em sua vida doméstica – vivia numa casa toda negra que imitava o estúdio de Salvador Dalí, por quem era fascinado. Seus discos também podem ser usados como roteiros com começo, meio e fim (Histoire de Melody Nelson e L’Homme a Tetê de Chou).
Até mesmo sua única obra em prosa, um romance curto chamado Evguénie Sokolov, poderia render um longa fascinante; o livro narra a vida de um jovem que descobre que pode se tornar um artista famoso ao usar seu problema de flatulência – Serge era viciado em peidos e escatologia.
“Uma exposição com uma pintura de Rafael jamais vai vender tantas entradas quanto um show de Michael Jackson – jamais. Isso é uma loucura – uma arte menor fazendo uma arte maior tomar na bunda”, disse em entrevista.
De fato, Serge procurava entender o caos do mundo. Um artista como ele, que queria ser pintor, fazia enorme sucesso fazendo canções pop, que ele muitas vezes considerava descartáveis. Sua mania de organização encontrava diariamente um universo meio fora do lugar, perturbado, cheio de som e fúria.
Deve existir um punhado de artistas assim no Brasil esperando um Sfar.

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