“Lincoln” é solene e sério – ainda bem

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De todos os ótimos filmes que estão em cartaz, aquele que eu daria um braço para ter escrito é justamente o menos apreciado “como cinema”. Lincoln, de Steven Spielberg, tem invariavelmente aparecido nas resenhas em português acompanhado pela palavra “solene”. Descobri agora que esse adjetivo é – bastante – pejorativo.

Porém, solene também significa magnífico, imponente e sério. E Lincoln é tudo isso.

Os críticos tiveram o trabalho facilitado pelo mercado, pois estão se divertindo ao comparar a “transgressão” de Tarantino e seu Django Unchained com a “pompa respeitosa” de Lincoln. Ambos tratam da luta para libertar os escravos nos EUA na segunda metade do século 19; o primeiro, que acontece antes da Guerra Civil, aposta na justiça pelas próprias mãos, nesse tesouro norte-americano que é a violência; o segundo, às vésperas do final da Secessão, prefere falar sobre o aprimoramento da democracia e da igualdade entre os homens – também algo caro para os EUA.

Os dois são extraordinários exemplos de boa narrativa. Enquanto Tarantino subverte tudo e todos, Spielberg aposta nas lições da história e nos heróis (ou anti-heróis) que trabalharam dentro do sistema. Um quer mudar os fatos; outro quer esclarecê-los.

Porém, pelo que eu li e entendi, não é possível – para alguns – fazer um grande cinema discursivo, sem invenção, respeitando os acontecimentos.

Tarantino é “mais cinema” porque ele… Por quê? Há mais sangue, tiros e cavalos? Existem menos cenas em interiores?

Mas deixo o Tarantino pra lá, porque ele seria o primeiro a desdenhar desse papo. Até porque o próprio diretor admite que é um acadêmico, um CDF. Para fazer um filme, ele estuda tudo sobre o assunto, vê todas as fitas relacionadas e depois parte para a brincadeira.

Se bobear, Tarantino é tão solene em suas homenagens quanto Spielberg. Mas isso é outra tese.

Agora quero concordar com o escritor Luís Fernando Veríssimo, que publicou no Estadão um pequeno artigo (aqui) comentando que Lincoln é muito mais do Tony Kushner do que do Spielberg. Apesar de no finalzinho da crônica (?) Veríssimo também achar que o filme tem pouco cinema, ele acerta em cheio ao dar muitos créditos para o roteirista da obra.

Kushner já tinha escrito Munique e sabe mexer no vespeiro com suas peças teatrais – aliás, que belo momento para rever Angels in America. Em Lincoln, o que ele faz com meia dúzia de páginas do exuberante livro Team of Rivals (que deu origem ao filme), da historiadora Doris Kearns Goodwin, é de arrepiar os pêlos do dedão.

O filme é tão bom, que não tem nenhum flashback e se concentra em poucos meses – às vésperas de ser assassinado – na vida de Lincoln; porém, parece uma precisa biografia, registrando todos os discursos, os problemas familiares, a vida doméstica, o carisma, a ascensão, a vida de advogado viajante, tudo do amado Abe. É tanta coisa sendo dita na hora certa e na medida certa, que a gente acha que conhece Lincoln de tudo quanto é jeito.

Claro, Kushner e Spielberg contaram com o monumento que é Daniel Day-Lewis, capaz de até morrer como Lincoln (é impressionante confrontar as descrições dos trejeitos do ex-presidente norte-americano no livro com o andar de Day-Lewis – é exatamente como imaginamos, um prodígio). Ele se aproxima do mito de forma respeitosa, mas nunca tensa. Sua empolgação é legítima. Em nenhum momento Day-Lewis deixa escapar o futuro de Lincoln, que ele será um herói, que será assassinado, que não poderá exercer seu mandato. Se o mundo fosse justo, ele dividiria o Oscar com Philiph Seymour Hoffman, talvez o maior ator do mundo hoje.

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O roteiro se divide em dois: a vida pública de Lincoln para aprovar a 13ª Emenda, que aboliria a escravidão; e as tarefas domésticas na Casa Branca, onde ele convive com a enlutada mulher e um dos filhos.

Ambos se concentram em cenas internas, enclausuradas, por vezes quase claustrofóbicas. O Congresso parece mais um galinheiro, com todos empoleirados; e a sala de despachos de Lincoln é uma daquelas repartições públicas de pesadelo, com papéis por todos os lados.

O parceiro habitual de Spielberg na fotografia é Janusz Kaminski, habilidoso tanto em lugares abertos (lembrem-se que o último trabalho da dupla foi War Horse) como em ambientes com pouca luz. Um mestre.

O filme começa e termina com dois discursos. Abre com trechos – recitados por soldados – do famoso pronunciamento de Gettysburg; e se encerra com palavras proferidas durante a cerimônia de posse do segundo mandato de Abe.

Pois é assim que vamos durante as duas horas e tanto de filme: discurso atrás de discurso. Essa corajosa e eficiente abordagem da dupla Spielberg-Kushner tem incomodado alguns críticos. Nesse ponto – dos discursos – dizem que o filme não tem “imagens”.

Pois só consigo enxergar coerência e seriedade nesse tipo de estrutura. Estamos diante de uma personalidade que entrou para a história por causa de sua verve, de suas palavras e narrações (uma das melhores anedotas é aquela do banheiro na Inglaterra). O Congresso, também personagem principal do filme, é lugar de discursos. A 13ª Emenda foi uma peça escrita. A palavra move todas as ações. Como não usá-la com toda sua força e plenitude?

Além do mais, jamais vou esquecer a figura de Lincoln (pode existir melhor imagem do que essa?), aqueles cavaleiros com suas perucas, a cena de Tommy Lee entregando a emenda para sua mulher, a fachada da Casa Branca. Imagens impressionantes.

Spielberg e Kushner conseguiram descrever um processo democrático. Eles mostram o funcionamento do poder, as lutas partidárias, os conflitos internos, o fio da navalha que é participar da política.

Tudo isso de forma clara e emocionante. Aplaudimos uma sessão do Congresso! Norte-americano! Um grande cinema, sem dúvida.

Sem contar todas as questões que ficam para o mundo contemporâneo – e o pessoal tem citado o mensalão etc.

Aí está um filme obrigatório para todos aqueles que se importam com o modo como a democracia se move. Depois de Lincoln, fica difícil ser leviano quando temos que falar sobre Política.

Deixo aqui o mesmo apelo que A.O. Scott fez no jornal New York Times (aqui). Ele pediu para que todos os pais levassem seus filhos para assistir Lincoln.

Bom, por aqui que os filhos então levem os pais. Que todos acompanhem a luta por igualdade e direitos.

Lincoln é sério e solene. Ainda bem. Já tem muita ironia e traquinagem por aí.

2 comentários em ““Lincoln” é solene e sério – ainda bem

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