O piloto

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O piloto é uma besta estranha”, escreve Brett Martin no essencial Homens Difíceis (editora Aleph). “Deve realizar várias coisas ao mesmo tempo”, complementa. Em resumo, o autor aponta que o episódio de estreia de uma série de TV precisa:

ter impacto suficiente para convencer executivos do canal e os espectadores de que todos devem continuar assistindo ao programa

se basear em uma dose pesada de ambientações e cenários para construir um universo, mas não se deixar consumir por essas exposições

deixar implícito um futuro em geral ainda não imaginado (sem fim, mas empolgante) nem por seus criadores

Ou seja, tem que tirar o negócio do chão e colocar pra voar.

Resolvi usar esses três parâmetros para analisar três pilotos exibidos recentemente pela internet (Amazon) e TV. E não é que a estrutura funciona? No fim, estamos falando sobre personagens fortes, uma história minimamente interessante e algo que seja capaz de resumir sobre do que se trata o material.

As séries são as seguintes:

TRANSPARENT

De Jill Soloway, roteirista que consolidou sua visão de mundo escrevendo para Six Feet Under. Narra os conflitos emocionais de uma família que mora em Los Angeles. O pai (Jeffrey Tambor) quer fazer uma revelação para os três filhos adultos (Gaby Hoffman, Jay Duplass e Amy Landecher). Chama todos para um jantar, mas as coisas não saem como o esperado e ele se cala.

Impacto: passa tranquilamente pelo quesito. Produzido para a Amazon, recebeu votação expressiva e foi um dos quatro projetos agraciados com uma temporada completa. As revelações sobre os mistérios de cada personagem soam críveis e o elenco demonstra grande intimidade. Impossível não se deixar levar pela verdadeira revelação do excelente Jeffrey Tambor. Sempre surpreendente, as cenas nunca nos levam para onde esperávamos – mas, era pra lá mesmo que deveriam ir.

Ambientação: sublime. Cenografia competente e externas deliciosas (parques e ruas de LA). A verborragia dos personagens é plenamente justificada e as cenas não são didáticas. As informações são traficadas para dentro dos planos de forma orgânica e delicada (e acontece muita coisa, todas no tempo certo). Deixa claro o tempo todo qual será o tema e o tom da série.

Personagens: um melhor do que o outro. Presenças marcantes e bem definidas, mas problemáticas o suficiente para nos deixar curiosos (e nunca irritados). Como a crítica mencionou, a turma parece saída de um filme do Woody Allen se fosse dirigido pelo Noah Baumbach.

 

BELIEVE

De Alfonso Cuarón e Mark Friedman. Foi o burburinho recente porque traz a assinatura do atual vencedor do Oscar de Melhor Direção (Cuáron) e tem J.J. Abrams na produção. Curiosa mistura de drama, comédia e ficção que conta a história de uma garotinha aparentemente paranormal protegida por um fugitivo do corredor da morte e perseguida por uma gangue do mal.

Impacto: um começo arrasador (apesar de já visto em filme do próprio Cuáron) com um acidente de automóvel, fuga da cadeia e uma penca de personagens misteriosos. Bastante ação e correria (algumas meio capengas, é verdade, caso daquela no galpão com as pombas). E a revelação final segura bem o interesse para o próximo. Apesar que só essa pegada “o mundo persegue uma dupla improvável” se demonstrou um tanto frágil.

Ambientação: boa. Algumas coisas soam esquisitas, como esse aspecto S.H.I.E.L.D da turma do bem e certo tom mambembe dos vilões (se eles são tão poderosos assim, por que não acabam logo com a brincadeira?). Excesso de correria também prega algumas peças, fazendo com que a gente queira saber um pouco mais da história antes de embarcar na tensão da ação. Nada muito extraordinário nas locações nem inventividade (apesar da promessa de algo maravilhoso por causa do início). Só que deixa o tema da série límpido e bem contado. Em quem podemos confiar?

Personagens: Johnny Sequoyah tem bastante carisma para incorporar Bo (e ela é a carinha da jovem Chloë Grace Moretz). E Jake McLaughlin parece segurar a onda. Mas o que espero mesmo é mais cenas com Kyle MacLachlan, que já demonstrou grande força como provável vilão. Porém, parece que tudo já foi dito no piloto e teremos uma série de perseguição. Faltaram personagens mais misteriosos e lances que prometessem outras tramas interessantes e cinzentas. Por enquanto, ficou bem contra o mal. Isso cansa, não?

 

MOZART IN THE JUNGLE

De Roman Coppola, Alex Timbers e Jason Schartzmann. Outro feito para a Amazon e que também vai ganhar temporada completa. Baseado em livro de memórias de Blair Tindall, mostra o cotidiano de personagens envolvidos com a sinfônica de Nova Iorque (uma oboísta, o maestro etc.).

Impacto: algum, mas fiquei com a impressão de ver o primeiro ato de um filme e não o piloto de uma série. Algumas cenas são longas demais, apesar de excelentes. Parece mais um terceiro do que um primeiro episódio. Dedica cenas inteiras para contar piadas que não acrescentam muita coisa à narrativa nem nos fazem pregar os olhos na tela. E tem aquele negócio esquisito: bastante impacto porque se passa no mundo da música clássica e não é toda hora que podemos mergulhar nesse universo. Mas o quanto ele nos interessa?

Ambientação: espetacular. O diretor Paul Weitz consegue enorme força seja nas cenas mais grandiosas, com toda a orquestra no plano, como na delicada audição final, quando explora o teatro vazio. A direção de arte se equilibra bem entre o glamour dos coquetéis e das festinhas do baixo clero. O texto é divertido e conta bem a história. Só que ainda não sentimos muito bem por que devemos acompanhar os episódios. Eles nos dizem respeito? Muitas questões musicais e poucos dramas com os quais podemos nos identificar.

Personagens: mesmo com um elenco tarimbado e conhecido (Gael Garcia Bernal e Malcolm McDowell, por exemplo), alguns personagens parecem estereotipados e outros não nos animam muito. A protagonista dá uma boa virada no final, mas soa muito passiva (e isso pode ser um problema quando o tema da série não é dos mais fáceis). No fim, ficamos na dúvida. É algo extremamente agradável de se ver por alguns minutos. Mas por anos a coisa pode se tornar enfadonha, pois os personagens ainda não nos tocaram.

 

2 comentários em “O piloto

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