“Boyhood”: um artigo sobre o nada

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Quarta-feira 05.11.14

Richard Linklater dirigiu Boyhood durante 12 anos. O filme acompanha ano a ano o crescimento do garoto Ellar Coltrane Mason Jr., da infância até a formatura do segundo grau. Ethan Hawke interpreta o pai do menino, Patricia Arquette faz a mãe e Lorelei, a filha de Linklater, aparece como a irmã.

No meio desse processo, Linklater fez diversos outros ótimos filmes (entre eles Escola do Rock, Bernie e parte da trilogia Before). Se ele morresse no percurso, Hawke deveria assumir a direção de Boyhood.

É o melhor filme do ano e certamente um dos projetos artísticos mais reflexivos da década.

Este é um artigo em flashback. Para tentar captar um pouco a passagem do tempo e como nossas percepções sobre o filme também mudam, escrevi trechos pensando em Boyhood durante cinco dias.

O resultado está abaixo.

*

Sábado 01.11.14

Jerry Seinfeld acaba de ganhar companhia. Se o comediante entrou para a história por ter feito a melhor série sobre o nada, Richard Linklater merece ganhar o título de Melhor Filme Sobre o Nada.

Boyhood é uma experiência fascinante e perturbadora. Para quem escreve roteiros então, tudo soa bem assustador.

Bastam uns 20 minutos de projeção para você começar a flutuar no vazio, como um fantasma observando o passar do tempo no Texas, EUA. Não há lentes, câmeras, atores, luzes, dinheiro, cheiro de couro, problemas, celulares que se acendem atrapalhando a projeção, nada (a tela some também) capaz de te afastar do que acontece na vida de um garoto dos 6 aos 18 anos de idade.

Neste momento chove em São Paulo e as pessoas parecem comovidas (você sabe que há uma crise hídrica brava em andamento no Estado). Pela manhã, terminei de ler o irresistível Quando os Skates Forem de Graça, de Said Sayrafiezader, obra também sobre o crescimento de um menino.

Neste livro de memórias, Said relembra a infância e adolescência ao lado da mãe, militante de esquerda que sempre acreditou na queda do império capitalista e na ascensão das crias de Marx ao poder em Washington. Também relata como foi ficar afastado do pai, iraniano apaixonado pelo proletariado.

As ideias e propostas jogadas por duas décadas na mente em formação do pequeno Said não o transformaram num comuna barbudo ou ditador insano. Seu livro é doce, engraçado e carinhoso, revelando a flacidez de velhas ideias e sonhos. Tudo soa banal e familiar.

Em algumas famílias, em vez de oferecer uma exemplar de Harry Potter para o filho, os pais preferem vender uma assinatura do jornal O Militante. É assim que as coisas são. Quando você tem onze anos, ser rejeitado por um amiguinho, que não quer mais brincar com você por causa da crise dos reféns no Irã, tem a mesma força dramática do que sofrer um terrível bullying.

Linklater consegue o mesmo efeito em Boyhood. Parece não existir dramaturgia, epifanias, grandes viradas, mudanças de atos, momentos inesquecíveis.

Assim como no livro de Said, o que está em jogo é a passagem do tempo e a memória dos pequenos desacontecimentos do dia-a-dia.

Afinal, somos formados por uma infinidade de situações prosaicas. Mas o que passa para a história é a revolução, a queda da Bastilha, o discurso final, o nascimento e a morte.

Não existe nada desses Grandes Eventos em Boyhood. Ou até existem, mas discretamente, sem música, sem espalhafato, sem melodrama. Como se fosse possível escrever um filme desobedecendo todas as regras, esquecendo os manuais (há um pouco disso em Chef).

Claro, Linklater não inventou o filme sobre o nada. Aliás, o primeiríssimo filme da história já registrava o nada (um trem chegando a uma estação). Mas como captar o nada (ou o tempo) e mesmo assim montar uma estrutura, emocionar, nos levar com mão de ferro de um lugar para o outro?

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Domingo 02.11.14

Correndo pela manhã percebi que entrei numa discussão perigosa e da qual não consigo sair facilmente. Comecei este artigo falando sobre o nada e usei um tom que pode levar o leitor a pensar que Linklater inventou alguma coisa e não sei nada sobre a história do cinema.

Explicando melhor, acredito que há dois tipos diferentes de “filmes sobre o nada”.

Existem aqueles que nos levam para lugares abstratos, quando aparentemente nada acontece na tela e passamos a pensar na arte, na condição humana, na onda do mar, na luz do verão etc. (exemplos recentes: os sensacionais Manakamana e Cães Errantes). São obras hipnotizantes, que parecem nos anestesiar e nos encaminhar individualmente para sensações alheias ao que o filme pretensamente transmite. É uma coisa viajandona, vamos creditar assim. Serve tanto para os sonhos de Dalí/Buñuel como para as esquisitices do Warhol.

Mas Boyhood se esforça para ficar sempre no segundo tipo, aquele em que nada forte (segundo os critérios de uma dramaturgia clássica) acontece, em que tudo parece ter um mesmo grau de tensão e relaxamento, quando chegar tarde em casa depois de uma farra gera o mesmo conflito de quase ser espancado pelo padrasto. Assim, há uma história acontecendo, algo que nos leva para associações imediatas e para a concretude da nossa existência. Podemos nos identificar porque Boyhood – mesmo rolando no Texas – exibe relacionamentos, beijos, brigas, encontros e desencontros, crescimento e envelhecimento. Tudo que temos como observar ao nosso redor.

Só que ele não aponta para os marcos. Naturalmente, quando aprendemos a escrever um filme que relataria a vida de alguém dos 6 aos 18 anos, salpicaríamos de momentos de transformação, o primeiro beijo, a primeira transa, a morte etc. Achamos que essas são as coisas que nos interessam (e por isso fascinaria o público). Por quê? Porque é o que temos para mostrar em duas, três horas de filme. Não conseguimos escrever na tela um romance do Proust, do Balzac, com suas miudezas e sutilezas.

Mas Linklater parece ter feito um sorteio. Como se enfileirasse as x horas de existência daquele personagem (realmente não vou fazer o cálculo) e sorteasse as 143 cenas e 164 minutos que fazem parte de Boyhood. Por que essas cenas? Porque são boas cenas, ele parece responder.

Mas e o personagem ativo, o passivo, a jornada do herói, a entrada na caverna e tudo isso?

Precisa?”, grita nosso demônio interior. Não, nesse caso não precisa.

Eu comecei a escrever um livro de memórias. E o primeiro capítulo tenta reviver o dia em que assisti ao E.T., do Spielberg. Aquilo pra mim me define até hoje – eu acho. Eu gostaria de acreditar que tinha apenas oito anos e fiquei preso na sala de cinema, hipnotizado pelas imagens durante toda a tarde. Ao voltar pra casa, percebi que meus pais tinham chamado a polícia, pois nunca tinha permanecido tanto tempo longe de casa. Apanhei e quase fui preso para cumprir alguma espécie de castigo pela desobediência. Mas nada disso aconteceu. Eu apenas cheguei do filme, dei boa noite e fui para o quarto, onde chorei a noite inteira por causa da solidão do menino Elliott. Mas na hora de escrever um filme sobre isso, como fazer para deixar claro a importância do momento?

Voltando ao papo sobre o nada, fui reler trechos do livro Por que o Mundo Existe?, de Jim Holt. Partindo da pergunta “por que existe algo e não apenas o nada”, o jornalista viaja pela metafísica e conversa com filósofos, religiosos e malucos em geral.

Na verdade, o livro invalida qualquer hipótese de considerar Seinfeld ou Boyhood objetos culturais sobre o nada. Afinal, o nada não existe.

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Segunda 03.11.14

Escuto a trilha-sonora de Boyhood enquanto escrevo. À tarde vi Tim Maia, de Mauro Lima, o que me fez pensar ainda mais sobre o longa de Linklater – de certa forma, ambos são cinebiografias (como Cat Power é sensacional, não?).

Porém, Tim Maia é só excesso, duas horas nas quais tudo parece importar (o que apenas nos leva a pensar que nada importa). Mas não vou entrar nessa. Última coisa: Robson Nunes e Babu Santana são grandes. Esperem, última mesmo: sacanearam legal o Roberto Carlos, hein?

Hoje percebi que Boyhood é realmente sobre o nada, mas aquele nada que nós não estamos acostumados a ver na dramaturgia. Por isso escrevi no domingo aquele lance “o cinema some durante a projeção”.

Paramos de pensar cinematograficamente enquanto assistimos Boyhood – demora um pouco, mas paramos.

Eu tremi umas dez vezes esperando uma batida de carro, uma morte (principalmente numa cena com serras) e algum tiro. Estamos acostumados a pensar sobre o cinema como um amontoado de clichês e sucessão de tramas e acontecimentos.

Com a contaminação da vida pelas imagens então, tudo deve ser epifânico, maravilhoso, dramático. Afinal, o dia-a-dia parece espetacular, incrível, estupendo sob as lentes de William Bonner.

Quem vê tanta notícia hoje pode acreditar que vivemos num planeta biruta, onde sete bilhões de seres não param um segundo de mergulhar em fantásticas aventuras e dramas. Pfui.

Acho que as coisas não são bem assim, não. E Boyhood nos joga na cara todas as cenas incríveis da nossa vida que não foram editadas para o filme final (muitas vezes dirigido por algum picareta sem imaginação).

Linklater não fez o único longa possível sobre a vida de um garoto, mas um longa possível. Um lugar onde não precisamos de catarse, heróis, cenas impactantes e diálogos sacadíssimos.

Existe lugar para algo assim no mundo do cinema hoje.

Segunda 03.11.14 – mais tarde

Tomei umas e li esta entrevista do Linklater. E perdi meu tempo escrevendo essas frases porque está tudo dito. Leiam, leiam, por favor. Muitas coisas que tentei sacar esses dias foram contempladas.

O que mais me surpreende é a estratégia e a capacidade que Linklater teve de se fixar num projeto, num conceito. Que maravilha. Há parágrafos extraordinários sobre escrita, controle e dedicação.

Um tremendo filme.

Terça 04.11 14

Enquanto conversava com Clara e Julia, amigas roteiristas, percebi que Boyhood é um ótimo gancho pra gente falar sobre coisas que nunca diríamos uns para os outros.

O filme tem essa capacidade de nos levar para as emoções mais pertinentes e importantes. Eu não preciso falar mais uma vez o quanto amo uma pessoa, mas sim explicar a maneira como ela delicadamente corta um pedaço de bolo – e o quanto isso me emociona.

Pelo jeito o acesso que Linklater conseguiu é geral e irrestrito.

Vale a pena finalizar escrevendo que os filmes sobre tudo continuam sendo a regra e muitos são espetaculares (o próprio Linklater tem um par deles). Mas realmente é muito bom ver que Boyhood mostrou a força das cenas esquecidas por muitos longas. Uma grande notícia para nós: há infinitas histórias que ainda não foram contadas. E você aí achando que já tinha visto de tudo.

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