Sala de roteiristas

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Mesmo na melhor sala de roteiristas de televisão, as pessoas dizem coisas terríveis. Confissões sobre os nossos verdadeiros sentimentos pelas pessoas de quem gostamos. Histórias da infância que nossos pais prefeririam que tivéssemos esquecido. Críticas ao corpo dos outros. É tudo material para subtramas, motivações, piadas descartáveis. Fico pensando em quantas pessoas queridas assistem à televisão procurando sinais da própria destruição.” Assim Lena Dunham, a criadora e protagonista da série Girls (HBO), abre um dos poucos trechos em que fala sobre a escrita de seu programa na autobiografia Não Sou uma Dessas (Intrínseca). Nesse caso, ela joga na mesa uma versão da história de um suposto estupro que teria sofrido.

A Sala de Roteiristas é o fetiche atual das produtoras no Brasil. Os editais do governo também chamam isso de “núcleo criativo”. Na prática, é a reunião de profissionais para pensarem e escrevem uma série.

O método é saudável e interessante. O problema é quando ele vira o único método. Ao mesmo tempo que esses encontros podem aprofundar o enredo, criar novas possibilidades para a trama etc., também conseguem sufocar ideias ousadas e prejudicar ainda mais a carreira daquele roteirista mais tímido, que enfrenta dificuldades de defender seu material perante profissionais mais experientes.

Tudo depende de como a sala é administrada. O líder (ou a líder, claro) desses encontros tem que ser um pouco psicólogo, carrasco e, além de tudo, mostrar que é quem mais domina aquela série. O sujeito deve ter o perfil do J.K. Simmons em Whiplash (um pouco menos agressivo; só um pouco).

É difícil. Por isso muitos produtos que adotam a sala de roteiristas naufragam e ficam sem personalidade. Não adianta, você pode colocar dez dos melhores roteiristas se encontrando diariamente. Se um Matthew Weiner, um David Chase, um David Simon, um Vince Gilligan não meter a mão e colocar seu tom e sua fúria naquilo, nada acontece.

Um bom roteiro não é feito com democracia, ou seja, nem sempre a melhor ideia é aquela que tem mais votos dos componentes da sala.

Por isso, acredito em métodos diferentes para cada autor. A sala funciona? Sim. Mas ela também pode ser um desastre? Sim. Algumas pessoas por aí acham que a sala dos roteiristas é a salvação da lavoura. Não, a salvação da lavoura é a criação e aperfeiçoamento dos nossos roteiristas. De cada um deles.

No mundo perfeito, cabe ao autor da série decidir quem contrata, como contrata e se contrata. Aí ele descobre se vale a pena a sala e quantas vezes por semana e de que maneira. Assim mesmo, sem regras – ou melhor, com apenas uma: o autor é quem manda.

Uma amiga está participando da criação de uma série numa sala de roteiristas dessas criadas por um produtor. Eles são obrigados a se encontrar todos os dias, das 14h às 20h, e, como são iniciantes, recebem uma miséria. Mas o produtor acha que está fazendo uma revolução e imitando os gringos.

Ela me enviou um relato (satírico, eu espero) de um dia típico dessa sala. É um bom exemplo para você saber quando cair fora de uma série que certamente não vai funcionar.

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14h

Os roteiristas começam a chegar.

14h15

Os roteiristas deveriam ter chegado. Mas alguns ainda estão no ônibus.

14h23

Finalmente, todos os roteiristas chegam.

14h24

Hora do café.

14h37

Depois do café, todos os roteiristas se posicionam. Cada um na sua cadeira. Cada um com seu computador. Cada um escrevendo o que tem vontade de escrever, terminando trabalhos e entrando em sites para fazer “pesquisas”.

15h

Reunião começa.

15h13

Alguém diz: “Ei, parece aquela história do Mike. Eu já contei pra vocês sobre o Mike, o tintureiro?”. Esse alguém já contou a história do Mike Tintureiro. Umas cinco vezes. Mas como ninguém ainda quer falar sobre o roteiro que precisam escrever, escutam novamente a história do Mike Tintureiro.

15h47

Aparecem as primeiras anedotas sobre futebol.

15h54

Futebol.

16h

Líder da mesa diz: “Gente, beleza e tudo, mas vamos lá. O que fazer com o Germano? Ele encontra a Samantha nesta cena, ou não? E se encontra, o que acontece?”. Na lousa, o líder escreve “GERMANO” e “SAMANTHA”. Depois faz diversas flechas saindo de cada nome. Silêncio. Como esse lugar é um aquário, o resto da produtora consegue observar cinco pessoas olhando atentamente para a lousa. Como se o mundo tivesse parado. Nada acontece.

16h45

A mesa se divide. Metade acha que Germano deve encontrar a Samantha e traçar a garota na mesa da cozinha, numa alusão ao Destino Bate à sua Porta. O outro grupo acredita que Germano deve finalmente confessar sua paixão pelo Josué, irmão menor de Samantha. “Mas isso não acabaria com a série?”, alguém menciona. “Verdade. Pausa para o café!”.

17h13

Depois do café, quando todos discutiram sobre as próximas férias, a crônica do Antônio Prata e a histeria em relação às ciclofaixas, a turma volta para a mesa.

17h15

Líder: “Bom, então o Germano não pode se apaixonar pelo Josué. Agora então nos restam somente doze possibilidades para essa cena. O que acham?”. Silêncio.

17h23

Alguém viu Black Mirror?”, diz um dos integrantes. A negativa é geral. “Então vamos ver um episódio agora! Sério, vai mudar tudo.”

18h

Fim do primeiro episódio (aquele do porco) de Black Mirror. Todos começam a discutir a trama, o quanto os grigos são sensacionais e por que o Brasil não produz alguma coisa assim. Num arroubo de entusiasmo, o líder diz: “E se o Germano estivesse esperando trepar com a Samantha, mas acabasse ensaiando o ato com uma cabra?”. Silêncio.

18h01

Líder: “Pausa para o café!”.

18h23

Na volta do café, alguém precisa ir embora mais cedo, porque naquela noite vai rolar a pré de um filme que ele colaborou. Despedidas, piadas sobre porcos e saudações que só roteiristas descolados entendem. Líder: “Ué, alguém viu o Mathias?”. Só agora a mesa percebe que o Mathias foi ao banheiro na primeira pausa para o café e nunca mais voltou. Provavelmente desistiu. Silêncio.

18h43

Líder: “Vamos lá, gente, precisamos sair daqui com alguma coisa. O Germano encontra a Samantha ou não? Se sim, o que rola? Se não, como vamos fazer?”.

19h01

Silêncio desde às 18h43.

19h13

Alguém viu o último episódio de Togetherness?”, diz um dos roteiristas.

19h43

Depois do último episódio de Togetherness, o assunto Germano volta à pauta.

20h

Líder: “Bom, gente, precisamos entregar algo, acabou o prazo. Então o Mathias escreve essa cena do jeito que ele achar melhor e pronto”. Alguém lembra que o Mathias está no banheiro ou sumiu. Líder: “Droga. Ok, então o estagiário escreve. Ótimo trabalho. Amanhã vamos pensar naquela cena do Germano e da cabra. Valeu. Alguém aí vai para o centro?”.

4 comentários em “Sala de roteiristas

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  1. Passei por uma dessas recentemente. Sou uma “jovem roteirista” à procura de trabalho e doida pra ser acolhida por uma sala de escritores. Isso dá uma sensação de pertencimento, né? Uma certa dignidade pra profissão, todo mundo ali, ralando, juntos, pausa para o café, futebol e o escambau e o foco foi passear.

    Em uma das últimas “entrevistas” que fiz, o produtor fez um mistério, deu algumas voltas e, por fim, revelou-me o grande segredo da nova estratégia de trabalho que a produtora estava tramando: “Você já ouviu falar em Writers Room?” (Uhum, claro, que roteirista não ouviu o canto sereia, a promessa do mundo novo?) mas tudo bem, só disse que sim, que achava bacana. E aí todo o resto da conversa foi sobre o deslumbramento semelhante ao da criança quando aprende uma palavra nova: na gringa é assim, todas as séries são escritas em writers room…. O writers room é o que tá faltando aqui no Brasil pras nossas séries… Olha, a gente quer ousar mesmo, colocar vários roteiristas juntos, criando, o writers room é o sonho de todo roteirista…”

    Quarenta minutos depois da palestra, ele resolveu perguntar algo sobre mim. Mas aí já era tarde, mas aí pareceu tão pouco, mas aí nessa fantasia não tinha espaço pra carne nova no pedaço, mas aí.. já era hora da pausa para o café.

    1. Obrigado pelo relato. O que me lembra a frase do Fernando Meirelles (acho que foi ele), que disse que no Brasil não faltam apenas roteiristas, mas também diretores, produtores, atores etc. Mas como estamos no pé da pirâmide, carregando os blocos, sobra primeiro pra gente. O bom é que estamos virando “mão-de-obra especializada”. Então, começaram a olhar para os roteiristas. Mas ainda falta muito, muito. Eu ri, mas é triste também, né? Encarar um produtor em 2015 que descobriu a sala dos roteiristas… Ai, ai, ai. Força.

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