Cinema, arte e lixo

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Fala-se tanto hoje na arte do cinema que podemos estar correndo o risco de esquecer que, em sua maioria, os filmes de que gostamos não são obras de arte”, escreveu a crítica Pauline Kael num artigo para a Harper’s Magazine, em 1964. Reler Criando Kane (Record, 2000), coletânea de ensaios de Kael, tem sido tanto divertido quanto elucidativo.

Uma das principais críticas de cinema dos EUA por três décadas (60-80) do século passado, ela via o cinema antes como projetor de prazeres mundanos – do que templo sagrado de filmes incompreensíveis.

Nesse mesmo artigo (chamado “Lixo, Arte e o Cinema”), Kael define o que um filme bom nos causa: “O filme não precisa ser sensacional; pode ser tolo e vazio, e ainda assim temos o prazer de um bom desempenho, ou apenas de uma boa fala. A carranca de um ator, um pequeno gesto subversivo, uma observação indecente que alguém lança com uma expressão de fingida inocência, e o mundo faz um pouquinho de sentido”.

A grande maioria de nós busca nos cinemas algum tipo de diversão, um momento de relaxamento, pequenas iluminações. Vamos para as salas com motivações um tanto diferentes daquelas que sentimos quando pegamos num livro ou pensamos em visitar a exposição da Abramovic. Isso é o óbvio ululante, mas muitas vezes parece ser um enorme segredo para alguns críticos.

Há um divórcio terrível (para os dois lados) entre público e crítica no Brasil. Muito porque eles, os críticos, não conseguem comunicar o que existe de tão terrível em Loucas pra Casar ou nas comédias do Hassum. A técnica é nojenta, sim, mas será que a história e algum gesto dos atores (as duas coisas que de fato importam) não transmitem algo capaz de emocionar tanta gente? O público brasileiro está errado o tempo todo nos últimos anos? Por quê?

Mas não tenho a mínima ideia de como responder isso (e sempre detono esses filmes). De qualquer maneira, isso foi apenas o ponto de partida para pensar no prazer do cinema e como esse meio pode ser vulgar e estúpido. Porém, é o mais prazeroso que existe.

Provavelmente Kingsman: Serviço Secreto, de Matthew Vaughn, não será lembrado como um dos melhores filmes de 2015 (aqui resenha para a Rolling Stone). Talvez não seja mesmo. Nunca será entendido pelo que não é: arte (seja lá o que isso signifique). Nenhum crítico pedirá para você guardar o ingresso da sessão num altar. Mas não há nada em cartaz mais divertido, insano, criativo e com momentos de deliciosa entrega de seus atores. Como é bom entrar numa sala e ser surpreendido, estar num universo fantástico e de fato relaxar.

Mas e a carnificina? O sangue? Os valores morais completamente distorcidos? O merchandising de uma rede de lanchonetes? A estupidez de cabeças arrancadas? Ora, mais Pauline Kael: “Podemos querer mais do cinema que essa virtude negativa, mas conhecemos a sensação do cinema na infância, quando adorávamos as sugestões de murmuradas obscenidades dos jogadores, gigolôs e vigaristas à passagem dos guardas. O apelo do cinema estava nos detalhes do crime, da vida dos ricos, das cidades perversas, e na linguagem dos durões e moleques. É o que nos arrasta ao cinema em primeiro lugar, abertura para outras espécies de experiência, proibidas e surpreendentes, e a vitalidade, corrupção e irreverência dessa experiência são tão diretas e imediatas, e têm tão pouca ligação com o que nos ensinaram ser arte, que muita gente se sente mais segura, sente que seu gosto está se tornando mais cultivado, quando começa a apreciar filmes estrangeiros”.

É impossível pra mim, apesar de conscientemente saber que posso estar muito errado, colocar um filme aclamado como arte acima de E.T., De Volta para o Futuro ou Scott Pilgrim.

Essa é a maravilha do cinema. Comemoramos com igual intensidade o aniversário de uma obra-prima do Tarkovsky e de Feitiço do Tempo. Falamos tanto de filmes geniais e aprovados pelos críticos quanto daquelas bombas como Velozes e Furiosos. Aliás, gastamos muito mais tempo conversando sobre os bons momentos de porcarias do que todas ótimas cenas de obras quase perfeitas.

Novamente, tudo isso é óbvio. Você quer assistir mais uma vez Caçadores da Arca Perdida, mas nunca mais ver O Sétimo Selo (apesar de achar Bergman muito mais artístico). Isso é ruim? Não.

Recentemente, o trecho que mais vi é o início de O Dia Depois de Amanhã, de Roland Emmerich. Não consigo desligar até a onda atingir Nova York. É um prazer mórbido ver a destruição de tudo, entender como chegamos nessa técnica e me colocar no lugar daqueles meninos. No fundo, eu gostaria de salvar a mocinha e viver essa experiência, finalmente apreciar na prática toda essa história de aquecimento global. E sobreviver.

Eu me sinto moralmente péssimo. Mas é isso aí. Dentro de um cinema, somos todos crianças levadas longe dos pais e dos professores. Muitas vezes apenas queremos o proibido, o sujo, o feio e o malvado. Sem essa válvula de escape, como viver?

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