O som do fim do mundo

Quando li que “Calls”, a série da Apple dirigida pelo uruguaio Fede Alvarez (“O Homem nas Trevas”), era uma “espécie de podcast com imagens”, desanimei. Pensei em algo tosco, como um PowerPoint animado ou aquelas fotos da natureza que passam em karaokês. Mas, depois de pensar uns dois segundos, percebi que “espécie de podcast com imagens” só pode ser… audiovisual? Afinal, se você pretende transmitir algo com som e imagem, já não estamos mais diante de “nenhuma espécie de podcast”. Ou seja, fiquei tão confuso quanto curioso.

Depois de fuçar mais um pouco, descobri que a série tem nove episódios (cada um entre 15 e 20 minutos), é adaptação de uma ideia original do francês Timothée Hochet e traz grafismos para ilustrar supostas chamadas telefônicas que tratam sobre acontecimentos fantásticos. Hum, será que isso presta? Vinte minutos acompanhando um diálogo telefônico? Sei não.

Mesmo na dúvida, fui atrás do negócio por dois motivos. Um: Fede Alvarez fez cenas interessantíssimas em “O Homem nas Trevas”. A maneira como utilizou o som para criar tensão numa história de um cerco a um cego é admirável. Além disso, o longa empolga com suas viradas surpreendentes. É uma mistura bem satisfatória de “Um Clarão nas Trevas” (1967), de Terence Young, com Audrey Hepburn, e “Sob o Domínio do Medo” (1971), de Sam Peckinpah.

Dois: a trama de “Calls” envolve um acontecimento capaz de provocar o fim do mundo. Bingo. Não resisto a qualquer coisa que envolva a eliminação da Terra. Sou fã  das catástrofes, qualquer uma (sim, inclusive “Melancolia”, de Lars von Trier).*

Depois de cinco minutos imerso em “Calls” já tinha sido fisgado por uma das melhores séries do ano. O que começou com uma desconfiança (“Isso vai ser chato demais!”) virou obsessão.

Fede Alvarez amarrou um excelente painel de histórias isoladas (tem traição, roubo, tentativa de assassinato, romance, suspense) com uma trama fantástica e curiosa. Parece que estamos diante de um episódio especial de “The Twilight Zone”. E tudo isso sem captar nenhuma imagem externa. Não há uma verruga de qualquer um dos atores (Lily Collins, Rosario Dawson, Nick Jonas, Pedro Pascal e outras vozes competentes) na tela; nem a foto de um cavalo galopando por uma exuberante pradaria ou extraterrestre com a cabeça de cone invertido. O que vemos são apenas traços, círculos, ondas e grafismos que parecem acompanhar as tensões e variações dramáticas das histórias. É como se acompanhássemos um aparelho que medisse os batimentos da trama. Ora, puro audiovisual. E num formato único, surpreendente. Difícil pensar em outros projetos assim. Fede assinou um exemplar raro. Se ele quisesse dar uma de Duchamp, era só expor a série na próxima Bienal.

O recurso de legendar as falas das personagens também colabora para o entendimento dos episódios e ainda acentua uma certa realidade dos eventos descritos (parece que estamos acompanhando uma reportagem que revela uma escuta telefônica ou o áudio de uma caixa preta de avião).

O uso das cores e formas para ilustrar os diálogos atiçam a imaginação e elevam a tensão. Fede Alvarez nos faz enxergar por dentro das trevas. Como ele mesmo mencionou em uma entrevista, é um enorme – e irresistível – teste de Rorschach.

Capaz de aguçar olhos e ouvidos, somos tragados para a imaginação. Só nos resta acompanhar a narrativa e tentar mentalmente sacar nossas próprias imagens da união dos diálogos com as sugestivas linhas e gráficos.

Definitivamente é impossível ficar passivo diante de “Calls”. A todo instante somos convidados a participar, lançar neurônios numa viagem alucinógena e empolgante. O espectador é empurrado para preencher a lacuna da imagem. E as possibilidades são infinitas. Isso deixa a série mais interativa do que aquelas em que você deve escolher o destino da personagem.

O roteiro ajuda. O fio que amarra tudo envolve multiverso, física e viagem no tempo. As histórias individuais também geram empatia. Há pequenos enredos para todos: um casal em crise, uma filha desesperada para falar uma última vez com a mãe, um golpista tentando reaver seu dinheiro. São nove histórias que poderiam ser independentes se não fossem trucidadas por um acontecimento fantástico.

Acima de tudo, “Calls” conta bons enredos, tem excelentes intérpretes e traz o roteiro em estado bruto. Curioso para ler um desses. Será que Fede colocou no papel sugestões de imagens? Rubricou ainda mais os diálogos com intenções? Lidou com o som no papel, indicando como a música deveria se comportar? De qualquer maneira, são bons exemplos para ótimos diálogos e cenas para atores fazerem testes.

A realização de algo tão inusitado prova que ainda há muito o que explorar no audiovisual. Com a inevitável guerra dos streamings, talvez os autores estejam diante de uma onda realmente criativa e de oportunidades (também no Brasil). Para cada produto que visa audiência, existe outro atrás de prêmios e reconhecimento da crítica. Sim, há o risco de sucateamento de salários e condições de trabalho. Mas em algum universo os roteiristas com talento estão neste instante recebendo os devidos créditos e travando ótimos diálogos com produtores e roteiristas.

A VOZ DO MESTRE

Walter Murch é um dos grandes pensadores sobre a edição de imagens e de som no audiovisual. Editor, diretor, roteirista e designer de som, foi indicado nove vezes ao Oscar e ganhou três peladinhos (edição de som por “Apocalypse Now”, montagem e edição de som por “O Paciente Inglês”).

Seu livro “Num Piscar de Olhos” (Zahar) é uma bela aula sobre como colar uma imagem atrás da outra e buscar algum sentido nisso. É um dos ótimos exemplares sobre narrativas e de como contar uma história no cinema.

Agora já é possível ver na faixa um delicioso documentário com suas falas: “Sight and Sound: The Cinema of Walter Murch”, de Jon Lefkovitz, está liberado no Vimeo (aqui).

No filme, ele explica alguns dos seus conceitos, analisa seus trabalhos e conta histórias dos bastidores. É fascinante ver Murch falar sobre suas parcerias com Coppola. “Apocalypse Now”, os dois primeiros “Chefões” e “A Conversação” são obras-primas também por causa de Murch.

Muitas vezes não prestamos atenção na musicalidade das cenas quando escrevemos um roteiro. O ritmo também está no som. Não apenas é fundamental ler em voz alta o texto, mas também prestar atenção nas pausas e silêncios. E tentar deixar isso claro no roteiro.

O SOM DO SILÊNCIO

E, ao contrário de “Calls”, onde o som é o responsável por preencher a tela e narrar a história, a ausência dele é que move “O Som do Silêncio”, primeiro longa de Darius Merrer – e ganhador dos Oscar de melhor montagem e som.

Um trabalho firme, conciso, às vezes até mesmo magnífico. Riz Ahmed se entrega com força ao papel de jovem músico punk que começa a perder a audição e por isso é obrigado a descobrir sua nova posição no mundo.

A partir de seu ponto de vista, de sua observação de um universo que começa a ser mergulhado no vazio, conseguimos arranhar a angústia de quem perde o sentido da existência. Como seguir em frente depois que te arrancam o que você possuía de mais precioso?

Angustiante, mas esperançoso, “O Som do Silêncio” arrebata com suas pausas e violência muda.

SOM E AÇÃO

As primeiras cinco páginas do roteiro de “Baby Driver”, de Edgar Wright, são um deleite para quem gosta de escrever rubricas. Existem as canções e imagens. Nenhum diálogo. Um maravilhoso exercício de descrição e autenticidade (leia aqui).

*

Diante dos atuais eventos, é quase um alívio ver nossa vida ameaçada por algo externo, que não podemos controlar. Por isso, um dos filmes recentes mais catárticos é “Destruição Final: O Último Refúgio”, de Ric Roman Waugh. Não é um vírus que se espalhou a partir de um mercado chinês nem governantes estúpidos ou idiotas sem máscara que podem acabar com tudo (esse tipo de horror é cada vez mais difícil de digerir). Os humanos não têm culpa dessa vez. Só deram azar. A ameaça vem do desconhecido: o bom e velho cometa que resolveu entrar naquela mínima porcentagem da estatística e se chocar contra a Terra. Pronto. Agora se virem com um problema desses. Entre um efeito e outro, Morena Baccarin e Gerard Butler têm que se reconciliar, afinal precisamos de histórias de amor no meio da tragédia. Uns três longas honestos assim por ano e o mundo seria um lugar mais divertido.

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