Listas das séries que não vamos ver

O professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Felipe Charbel escreveu na revista “Piauí” de abril um artigo sobre o poder dos livros que não lemos e que nos definem. “Desconfio que as lacunas são o que existe de mais valioso na composição química de um leitor. Elas nos individualizam tanto ou mais que aquilo que absorvemos – as cenas, frases, tons e ritmos dos livros que amamos e que nos formaram. Lacunas são como janelas, vias de acesso ao que nem sempre compreendemos com clareza sobre as nossas escolhas literárias – por exemplo, os livros que retiramos da estante para pôr numa pilha sobre a cômoda e passam meses ou uma vida pegando poeira”, diz um dos trechos.

Além de comentar sobre suas escolhas e gostos pessoais, tanto para devorar um exemplar como para momentaneamente deixar o coitado na fila de espera, o autor criou uma interessante classificação para as obras que estão no radar de sua leitura, mas ainda são lacunas. Existe “a lacuna interessada”, “a lacuna como presente que nos ofertamos”, “a promessa do tédio”, “a lacuna supersticiosa” etc. Ele encerra o texto (isso é um spoiler?) com um aforismo: “Ler é uma escolha. Deixar para depois, também”.

O ensaio é ilustrado por um desenho do quadrinista escocês Tom Gauld (“Guarda Lunar” e “Golias”, ambos publicados no Brasil pela Todavia), onde alguém procura organizar alguns livros em pilhas identificadas com “livros que eu deveria ler”, “livros que eu quero que vejam atrás de mim nas chamadas de Zoom” e “livros que eu agora percebo que nem um lockdown forçado vai me induzir a ler”.

Atire o primeiro exemplar com mais de 500 páginas quem nunca sofreu com a angústia da leitura atrasada. Aliás, o próprio veículo que publicou o desabafo do professor Charbel é um exemplo de como arrasto minhas tarefas literárias. A “Piauí” traz há 176 edições (70 e poucas páginas inéditas todos os meses) uma infinidade de textos no mínimo curiosos. Compro religiosamente cada exemplar e viro deliciado suas folhas. Mas, na média, 50% das matérias realmente me interessam – e leio 20% delas. Portanto, todos os meses, 30% das palavras veiculadas que me atraíram irão mofar em alguma das minhas pilhas de leituras futuras (a.k.a “um dia vou doar tudo sem ler”).

Apesar disso, gosto de ter a maior quantidade possível de livros ou artigos que talvez nunca vou ler perto de mim. Não sei quem disse que a biblioteca é a roupa da casa. Acho essa imagem civilizatória. Assim como me relaxa saber que existe companhia ao alcance dos olhos. Às vezes uma frase, uma pergunta aleatória e uma indagação de uma personagem podem salvar seu dia.

Não sinto nenhuma pressão para devorar todas as letras que adquiro. O efeito é até o contrário: essa possibilidade de observar uma boa quantidade – e até mesmo impraticável – de leitura para o resto da vida me tranquiliza. Como seu eu pensasse: “Bom, não rola morrer antes de pelo menos dar uma olhada naquele exemplar ali. A morte vai ter que esperar”. A biblioteca é uma imensa Sherazade enganando a Ceifadeira. Os livros formam uma espécie de barreira, um muro impedindo a invasão dos zumbis.

A mesma coisa não acontece com o audiovisual. Aí eu me sinto lascado, pressionado, sufocado por lacunas. Se o crítico literário Harold Bloom batucou o termo “angústia da influência” para comentar sobre a aflição que os escritores sofrem dos cânones, eu padeço da “angústia da referência”. Por trabalhar com roteiro, tudo o que envolve imagem e som deve passar pelo meu escrutínio.

Já aprendi a lidar com os longas-metragens. Estipulei há décadas a meta de assistir a um filme por dia, frequentei dezenas de mostras e tentei gabaritar as edições que o saudoso crítico Rubens Ewald Filho lançava com críticas e sinopses. De certa maneira fui me apaziguando com a idade. Mas as lacunas persistem e só aumentam. Porém acho que já fiz um bom trabalho. Ainda não dá para se aposentar, mas o FGTS está gordinho.

Só que essa tranquilidade não adianta nada diante do tsunami de séries que assola o planeta já há alguns anos. Como acompanhar tudo isso? E agora as plataformas de streaming resolveram entrar TODAS no Brasil ao mesmo tempo e você nem consegue jogar a desculpa “não vi porque não baixo pirata”.

A “angústia da referência” bateu forte. Todos os dias é como se abrissem outro buraco para você se afundar. Estreou a nova daquele roteirista que você gosta; tem episódio extra de pandemia da comédia gostosinha do ano; droga, o Barry Jenkins fez um trabalho primoroso com o livro do Colson Whitehead; preciso ver essa da Disney com o sujeito de “Três É Demais”; apareceu uma bobeira na Netflix que é divertida para assistir enquanto fuço no celular; já vão lançar a segunda temporada de “Ted Lasso”; e essa da Apple escrita pelo Stephen King, quando chega?; graças a Deus “Halston” tem só seis episódios; essa do assassino de turistas é legal, mas como acaba?; domingo tem episódio novo de “Mare of Easttown”.

É uma carnificina. E, ao contrário dos filmes, as histórias não se resolvem em 90 minutos. São temporadas e temporadas de sofrimento e dedicação. Um horror.

Parafraseando Charbel: “Desconfio que as lacunas são o que existe de mais valioso na composição química de um espectador de séries. Elas nos individualizam tanto ou mais que aquilo que absorvemos – as cenas, frases, tons e ritmos das séries que amamos e que nos formaram. Lacunas são como janelas, vias de acesso ao que nem sempre compreendemos com clareza sobre as nossas escolhas audiovisuais – por exemplo, as séries que colocamos na nossa lista pessoal e passam meses piscando na tela”.

A lista de séries “para assistir” cresce mais que a ignorância no governo Bolsonaro. É desesperador. Por isso sugiro novas categorias para nós, espectadores, conseguirmos catalogar essa angústia. Além dos tradicionais gêneros (comédia, drama, séries premiadas etc.), teríamos:

  • Séries que eu assistiria se os episódios tivessem 20 minutos.
  • Séries que vou assistir somente o primeiro episódio para poder comentar no bar (quando a gente conseguir frequentar o bar).
  • Séries que quero ver, mas sei que isso jamais vai acontecer por causa de uma implicância qualquer.
  • Séries que não me interessam, mas quem sabe um dia eu vejo dez minutos porque não aguento mais ficar fora do hype.
  • Séries que eu odeio por causa do hype e por isso vou falar que vi, mas jamais quero passar perto delas.
  • Séries que eu sei que devem ser boas, mas estou sem saco no momento.
  • Séries que posso dar play em qualquer episódio que vai me fazer feliz.
  • Séries que vou assistir somente se for obrigado ou sofrer algum tipo de ameaça grave.
  • Séries que eu veria se tivessem somente uma temporada.

Acredito que essas novas classificações também seriam valiosas ferramentas para as plataformas. Afinal, o que a gente não vê, também nos molda.

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