Um roteirista no set

Na maioria das vezes acho desconfortável visitar o set de gravação de uma série que colaboro.

Além das perguntas constrangedoras e irrespondíveis (“É isso que imaginou?”; “Por que eu morro logo no primeiro episódio?”; “A gente arrumou uns errinhos, tá?”; “Sabe quanto custa a diária de um cavalo?”), há a eterna sensação de deslocamento, que você não deveria estar ali. Você é o elefante na sala.

Vamos para uma analogia que sempre funciona: futebol. É como se o roteirista fosse responsável pela tática do jogo. É ele quem escolhe como o time irá se comportar em campo, estuda feito um demente o adversário, vê quinhentas vezes os últimos jogos da sua equipe e acompanha todos os torneios – até mesmo o obscuro campeonato da Islândia. Ele está em dia com as novas técnicas, ama o Guardiola, mas sabe que às vezes tem que trancar o time feito o Simeone, e tenta manter o coração quente e a cabeça fria como Abel Ferreira. O sujeito é o rei da prancheta.

Tudo pronto. Gráficos elaborados, marcação sob pressão funcionando lindamente no papel, elenco afinado e completinho. E chega a hora do jogo. Você entra no estádio e vê a arena lotada. Será um grande espetáculo. O que pode dar errado? Estudou aquilo com afinco, vivenciou cada jogada, leu em voz alta vírgula por vírgula. Todos aprovaram sua técnica e ousadia. Mandaram e-mails falando: “Tá sensacional! Que ideia! Uau, não esperava por isso! Vai arrebentar!”

E então… O técnico chega! Opa. Então quer dizer que você… É, isso mesmo. O técnico é quem manda. Até gentilmente ele pega a prancheta das suas mãos, junta os jogadores, faz a preleção e muda só umas coisinhas naquele esquema que você pensou ser infalível. Na hora do jogo, quem dá as cartas é o “professor”. Ele pode até pedir sua opinião durante a partida, mas saiba que seu nome só será citado se perderem de 7 a 1. Precisam de um culpado, certo?

Por isso temos os showrunners, que são respeitados como técnicos e táticos, o ideal dois em um. Por aqui, na maioria das vezes, no dia do jogo, os roteiristas são apenas as pessoas que seguram as pranchetas ao lado do técnico e tentam não estragar tudo.

Mas isso não é nada ruim quando o treinador é o Ted Lasso (acho que hoje todo mundo já assistiu esse docinho de série, não?), por exemplo. Esse é o casamento perfeito. Roteirista pode sim apenas gostar de escrever a tática, mas não ter a mínima aptidão ou vontade de permanecer na beira do gramado orientando o time e recebendo cusparadas no cocuruto.

Vamos continuar mais um pouco com “Ted Lasso”. O treinador Barba (Brendan Hunt) adora ser o roteirista do diretor Ted Lasso (Jason Sudeikis). Porém, dependendo do ambiente, muitos acabam se tornando o Nate (Nick Mohammed), ambicioso e rancoroso por acreditar que jamais é reconhecido pelos bons resultados da equipe. E tem muita gente por aí criando Nates em cativeiro, até porque roteirista é por vezes um bicho naturalmente vingativo e que adora se vitimizar (opa, nova pauta).

Ok, o Nate exagerou na dose, pois o querido Ted é um sujeito bacana. Mas, de fato, enche um tantinho a paciência descobrir que em certos casos todas as pessoas envolvidas numa partida podem mudar o seu plano a qualquer momento e jogar seu árduo planejamento para escanteio. Além disso, quantas vezes na entrevista coletiva avisam que Jorge Jesus E a tática do Zezinho foram os responsáveis pela vitória massacrante? Se isso não gerar Nates…

Ao mesmo tempo, você precisa reconhecer que treinadores ganham jogos sim e que muitas vezes a tática estava completamente equivocada. Roteirista também erra – e muito.

Eu, particularmente, adoro ser o cara da prancheta. Claro, para isso tenho que estar em total sintonia com o técnico. De qualquer maneira, acho que a resposta está completa. Se eu não sou o treinador, mas confio nas decisões dele, por que não assistir ao jogo no conforto do lar? Muitas vezes ir para o estádio e sentar no banco é só perda de tempo.

Para encerrar, antes que eu me perca ainda mais, uma última analogia. Para escrever um bom roteiro você precisa das mesmas coisas que um time para vencer uma partida: técnica, talento e sorte.

UM LIVRO

“As Histórias de Pat Hobby” (Todavia) traz 17 contos tristemente hilários de F. Scott Fitzgerald. Todos têm como protagonista o roteirista Pat Hobby, protótipo de tudo o que imaginamos de como um roteirista era (é?) no auge do poder de Hollywood: bêbado, talentoso, fracassado e sem nenhum tostão.

Publicados pela revista “Esquire” entre janeiro de 1940 e maio de 1941, os textos compartilham muitas das experiências que o próprio Fitzgerald teve nas suas passagens como escritor em Los Angeles. Apesar da distância do tempo e de todas as mudanças na indústria do audiovisual, grande parte dos perrengues que Pat enfrenta são plenamente reconhecíveis ainda hoje pela classe.

O sujeito tem que vender o almoço para pagar o jantar, mendiga atenção para ganhar a chance de mostrar seu trabalho e acaba naufragando na própria vaidade.

Rara chance da gente ler ficção com um roteirista como protagonista. Mas já avisando: apesar de charmoso e hilário, o tom geral é de pura melancolia. Cuidado com os gatilhos.

VÁRIAS PERGUNTAS

Volto brevemente para a primeira pauta. Como fiz analogia com futebol, naturalmente todos os exemplos foram masculinos (porque movimentam muito mais dinheiro, público, imprensa, atenção etc.). Mas se a nossa personagem símbolo da prancheta fosse mulher (ou LGBTQI+), a situação dela seria igual?

Como lidamos com arte, não há preconceito entre a gente, certo? É? Mesmo se ela aparecesse num set… Ops, num estádio tomado por homens?

Será que a vida da “mulher da prancheta” é mais difícil ou complicada do que aquela do “cara da prancheta”?

Mesmo com muitas salas de roteiro e séries comandadas por mulheres, quando uma roteirista aparece na arena, ainda existe um estranhamento, uma reação diferente dos jogadores e público?

Como anda o machismo – e o preconceito – no nosso meio?

Cartas para a redação, por favor.

UMA FRASE

“Escrever um romance é como nadar no mar; escrever o roteiro de um filme é como chafurdar em melaço”, John Fowles.

UMA SÉRIE

“Girls”, criada por Lena Dunham, fez sua estreia na HBO no dia 15 de abril do longínquo 2012. Dez anos! Se hoje conseguimos olhar para os diversos problemas da série (branquitude, personagens privilegiados), também vale ressaltar que, guardando todas as proporções possíveis, ela foi a “Euphoria” da época.

Tá, não é bem assim. Mas ambas abriram espaço para que os meios adultos discutissem o que estava acontecendo com os jovens (pelo menos na ficção). Além de revelarem ou afirmarem diversos talentos já maduros, apesar da pouca idade.

Quando “Girls” apareceu, lá estavam garotas falando sobre sexo, drogas, música eletrônica e perdidinhas com suas vidas de 20 e poucos anos. E parecia tão real!

Lena Dunham conseguiu exibir um texto cativante, esperto e muito engraçado. Além disso, deu esperança para milhares de roteiristas jovens e mulheres que estavam vivendo no auge do império dos “homens difíceis” (Don Draper e Walter White dominavam as manchetes). Então era possível fazer sucesso sendo uma garota! (As adultas já tinham “Sex and the City”.)

Lena, Allison Williams, Jemima Kirke e Zosia Mamet viraram nomes incontornáveis quando a gente pensa na representação de uma certa juventude da última década.

Com uma produção caprichada e um casting arrasador (inclusive masculino, como esquecer do pirado Adam Driver?), “Girls” sem dúvida vale a revisita.

AQUI um texto interessante sobre o aniversário de estreia da série.

E AQUI, o roteiro do primeiro episódio.

NOTA: Esse texto foi publicado primeiro para os colaboradores do podcast “Primeiro Tratamento”.

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