Uma dica sobre… dicas

Sou viciado nas listas de conselhos e dicas de roteiristas. Geralmente organizadas em tópicos, reúnem ensinamentos e lições dos mestres – e de aprendizes também. Você sabe como elas são. Quase sempre repetem as mesmas regrinhas básicas, misturando banalidades com frases de efeito (e outras sem muito sentido): leia roteiros; escreva sobre o que você sabe; se tiver um bom começo e um excelente final, o resto é fácil arrumar; faça pelo menos uma boa página por dia; história é personagem – e vice-versa.

No meio de tudo, também rola uma citação de Billy Wilder para dar credibilidade extra e pronto. Agora, pode pegar o top 20 do Tarantino e aplicar na sua próxima obra-prima. Sabe o que vai acontecer? Nada. Provavelmente, se você for um roteirista de verdade (sim, há falsos, mas falaremos disso no futuro), intuitivamente já sabe de todos os itens que importam.

Então por que ler essas coisas? Bom, elas funcionam para nos entreter e dar aquele quentinho no coração, como se alguém de fato se importasse com seu trabalho e quisesse que sua carreira explodisse até os píncaros da glória. E porque, às vezes, uma pérola aparece e se revela mais útil que remédio para o fígado em dia de eleição.

Dia desses topei com uma dessas descargas elétricas nos neurônios. Num rol de conselhos da roteirista e atriz britânica Phoebe Waller-Bridge (“Fleabag”), a número sete diz mais ou menos o seguinte: “não seja chato”. Simplifiquei, os conselhos todos estão AQUI. Mas eu achei esse negócio de “jamais seja chato”, absolutamente genial. É isso.

Se precisasse dar uma única dica para qualquer roteirista, seria: “Não escreva coisas entediantes. Por favor, a gente não tem tempo para perder. Tente divertir o público, emocionar a audiência, fazer a turba ficar sem fôlego de tanto rir, desidratada de tanto chorar ou com perigosas arritmias devido aos saltos dramáticos do coração – se conseguir tudo isso ao mesmo tempo, melhor. Mas jamais seja chato! Porque vamos sair do cinema, desligar o computador, tirar a TV da tomada e enfrentar o mundo, que é primordialmente chato demais. Então, nós queremos uma folga disso tudo, um pouco de paz, alguma ordem no meio do caos, umas horinhas de conforto, de ilusão, de alegria, de empolgação, de emoção. Nós temos de graça muita chatice, diariamente, e em doses generosas. Então, faço um apelo: não seja chato”.

Se o mundo fosse um lugar mais prático, as séries e filmes só teriam duas classificações: “chato e quero ver de novo”. Atenção: chato é chato. Lento não significa chato. Nem confuso. Você tem que saber o que é chato. Então leia tudo o que escreve e, no final, pense: “Isso tá chato?” Aí sim começará a ter uma resposta sobre a qualidade da sua escrita.

UM LIVRO

“Quando Deixamos de Entender o Mundo” (Todavia), de Benjamín Labatut, mistura histórias reais e ficção para contar a trajetória de matemáticos, químicos, alquimistas, físicos, cientistas e malucos em geral que tentaram explicar o mundo e/ou dar algum sentido lógico ao caos do universo. E não é um pouco isso que os roteiristas fazem? Tá, não quero comparar Heisenberg com Paddy Chayefsky, nem Schrodinger com Aaron Sorkin, mas todos nós precisamos construir um universo minimamente lógico, que funcione seguindo algumas regras e equações. E isso pode ser muito perturbador.

Afinal, lá estamos nós diante de uma fórmula mágica e, dizem, infalível: siga seu personagem de A até B, coloque uns obstáculos, faça tudo em três atos ou 15 episódios e é isso. Mas não! Escrever um roteiro é como mexer com a mecânica quântica. Você tateia o invisível, busca dar algum sentido para o mais absoluto caos. Há um mapa, uma regra geral, mas o diabo mora nos detalhes. E cada maldito personagem, cada diálogo, cria vida própria e se mexe para direções que você não suspeitava, numa explosão incontrolável de energia. É uma desgraça. E como convencer os players, produtores e diretores que você (e só você!) está enxergando a melhor história possível?

Todos os contos do livro são fabulosos, divertidos e perturbadores. Mas o que dá título ao volume de Labatut é uma preciosidade. A descrição dos delírios de Heisenberg após tomar um alucinógeno é impagável. Uma grande obra sobre nossa trágica busca por conhecimento e beleza.

UMA ATRIZ

Renate Reinsve, no filme norueguês “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier, tem a suave máscara da pessoa comum. Você parece reconhecer aquele rosto de algum café ou daquela festinha inusitada do último final de semana na casa da Paulinha. Além disso, carrega algo de camaleônico. Ela pode chorar, rir, ser sensual, materna, irritante e amável ao mesmo tempo. Pode ser a atração de um evento como permanecer absolutamente invisível. E você acredita piamente em cada gesto. Sua face lindamente banal faz com que qualquer diálogo passe por ela.

Gosto de imaginar rostos para as personagens enquanto escrevo. São feições que me permitem viajar com mais precisão no texto. O carisma de Renate Reinsve e a capacidade que ela tem de discretamente chamar a atenção me fazem agora desejar a sua atuação para qualquer papel.

Há um pouco dela no trecho abaixo do filme comentado pelo diretor na seção Anatomy of a Scene, do jornal “The New York Times”. Esses pequenos vídeos trazem ótimos insights dos criadores e servem como bons momentos de aprendizado. Para maratonar.

UMA SÉRIE

A norueguesa Renate Reinsve me lembrou demais Maude Apatow, a Lexi da série “Euphoria”. Concebida por Sam Levinson, demorei para entrar nesse drama hiper-realista da HBO. Porém, foi só insistir em algumas doses e fiquei viciado. Criativo, exagerado, dramático, absurdo e com um elenco extraordinário (Jacob Elordi é um assombro como Nate), apresenta um daqueles materiais que te fazem perguntar: “Como esse sujeito escreveu essa sequência no roteiro, meu bom Deus?”

A sacada daqueles prólogos é a alma da série. São quase curtas independentes, um mais provocador e interessante que o outro. O uso da trilha também beira a psicopatia.

Graças a esse demônio chamado internet conseguimos acessar um vislumbre do processo criativo de Sam Levinson.

Dá pra ler o roteiro do piloto de “Euphoria”, por exemplo, aqui.

E dar uma olhada nos conceitos da segunda temporada da série aqui.

UM FILME

“C’mon, C’mon” (“Sempre em Frente”, no Brasil) é o filme mais esnobado da temporada. Escrito e dirigido pelo elegante Mike Mills (“Mulheres do Século XX” e “Toda Forma de Amor”), ele até teve algum hype quando passou pelos festivais no segundo semestre do ano passado. Mas depois perdeu o fôlego e entrou despercebido na temporada de premiações. Uma daquelas injustiças que quem sabe o tempo corrigirá (ou não).

Sensível, engraçado e com três atores em estado de graça (Joaquin Phoenix, Gaby Hoffmann e o garoto Woody Norman), o longa é absolutamente preciso, sem gordura, nada sentimentaloide, mas emocionante até nos levar às lágrimas.

Sua fotografia PB e os trechos documentais conseguem fazer com perfeição essa mistura da moda: ficção com realidade.

Tem um trechinho lá no Anatomy of a Scene também.

E quem quiser se aprofundar no trabalho de Mills, há uma ótima conversa com ele no podcast THE FILMMAKER TOOLKIT (aliás, outro endereço bem bacana para gente frequentar).

UMA FRASE

De um produtor para uma chefe de sala depois dela entregar todos os dez episódios da primeira temporada de uma série: “Se a gente mudar o sexo do protagonista, você acha que terá que mexer muita coisa no roteiro? Não, né? Só meio que trocar o nome”. Pois é. Essas coisas acontecem bem mais do que gostaríamos. Falar o quê?  

UM ROTEIRO

Eu gosto de escrever rubricas tanto quanto diálogos. Quer dizer, se o prazo estiver curto e o desespero, grande, prefiro diálogos porque as páginas rendem. Ok, brincadeira.

Mas quando preciso fazer uma longa sequência praticamente sem diálogos, dou uma olhada nas cinco primeiras páginas de “Baby Driver”, de Edgar Wright.

Uma maravilha. E nada chato.

Aqui você consegue ler.

Nota: Esse texto foi distribuído primeiro com exclusividade para os apoiadores do podcast Primeiro Tratamento em abril de 2022.

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