O divertido e doce fim do mundo

O apocalipse finalmente parece que está a apenas alguns minutos de nossas casas. Seja por um vírus ou por algum maluco capaz de inventar uma nova tecnologia que promova o fim dos tempos, existe no ar uma sensação de que estamos no último baile. Tratem de aproveitar o que resta porque o futuro é sombrio.

Mas não se desesperem ainda porque temos os jovens. A esperança da retomada, da humanidade fazer algo que preste, reside na molecada. Só os menores de idade sacaram que precisam arrumar o planeta (redondo) ou amanhã não terão mais um cantinho para chamar de lar.

Pelo menos esse é o singelo e divertido recado de duas ótimas obras em cartaz na Netflix: a animação “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, de Mike Rianda; e a primeira temporada de “Sweet Tooth”, baseada nos quadrinhos de Jeff Lemire e comandada por Jim Mickle.

Ambas lidam com o extermínio da humanidade de forma criativa e cativante, abordam um mundo em colapso tecnológico e colocam no centro das atenções crianças e bichos. Além disso, podem ser categorizadas como diversão “para toda a família” (se é que ela ainda existe depois da última discussão no grupo do WhatsApp).

“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, da Sony Animation, já é um dos melhores filmes do ano. Produzido pela simpática dupla Phil Lord e Chris Miller, ganhadores do Oscar com o formidável “Homem-Aranha no Aranhaverso”, narra a saga de uma família disfuncional (alguma não é?) durante um evento apocalíptico. Pal (Olivia Colman), um programa de computador, se aproveita da ganância de seu criador (uma mistura de Zuckerberg com Steve Jobs) e pretende literalmente despachar a humanidade para o espaço.

Só que a vilã não conhece os Mitchells. Bom, nem deveria, afinal aparentemente eles se inserem na mediocridade da vida em sociedade. A filha mais velha, Katie (Abbi Jacobson), se prepara para os conturbados anos na universidade. Ela quer ser cineasta e transforma suas experiências pessoais em alucinantes curtas-metragens que contam com as participações do irmão menor, Aaron (Mike Rianda), viciado em dinossauros, e o lesado cachorro Monchi. O pai, Rick (Danny McBride), perdeu a conexão com a filha e sente saudades de quando ela era apenas uma garotinha dependente e carente. Linda (Maya Rudolph), a mãe, dá duro para ser a cola de seres que vivem lado a lado, mas parecem cada vez mais distantes uns dos outros.

Nada como o fim do mundo para unir as pessoas. Na jornada para impedir Pal de destruir o Homo sapiens, cada membro dos Mitchells descobre como reestabelecer a harmonia da família. No final, o recado é claro: no atual universo de conflitos, a boia de salvação está na empatia e compreensão. Mais do que nunca o negócio é se colocar no lugar do outro.

O longa consegue ser bem sucedido em várias frentes. Traz uma animação ambiciosa, fascinante e metalinguística (a narração de Katie permite comentários visuais psicodélicos divertidíssimos), que nunca cai na mesmice. O roteiro dá conta com agilidade e interesse de temas contemporâneos (diversidade, a onipresença da tecnologia, a desconexão geracional), oferece delírios hilários (sim, há um Furby gigante) e meia dúzia de pay offs memoráveis. E todas as personagens são bem desenvolvidas, com especial atenção para uma vilã com bons motivos para ferrar com tudo e dois coadjuvantes robôs que mereciam um spin-off.

De certa maneira, a catástrofe global na série “Sweet Tooth” também se origina na ciência (em vez de um vírus virtual, temos um vírus biológico) e as crianças novamente exercem papel principal na recuperação da vida inteligente no planeta.

Em 2009, quando o canadense Jeff Lemire começou a publicar os quadrinhos que contavam a saga de Gus, um menino híbrido (metade criança, metade cervo), num mundo assolado por uma praga devastadora, ainda não havia a epidemia de Covid-19. Hoje, a história parece bastante atual e premonitória. O que só traz mais importância para o poder da imaginação, das artes e da livre expressão.

Na história, as pessoas começam a cair mortas devido a uma doença misteriosa e não há cloroquina (ou isolamento social) capaz de dar conta da desgraça. Logo, o caos se instala. Curiosamente, após o surgimento do vírus, os bebês começam a nascer com características de bichos (como se todas as crianças participassem daquele antigo comercial da Parmalat). Quase uma década após o início do flagelo, Gus (Christian Convery), que foi criado numa floresta isolada, perde o pai e decide colocar a pata no mundo e procurar sua mãe desaparecida. Para isso, arranja a companhia de Jepperd (Nonso Anozie), um ex-jogador de futebol americano.

Muita coisa mudou desde o ponto final nas páginas de “Sweet Tooth” em 2013. Principalmente nossa percepção sobre o fim dos tempos (deixou de ser uma hipótese fantasiosa para algo factível por vários meios). A epopeia violenta, cruel e assustadora de Jeff Lemire se transformou numa série doce, lúdica e fofa. Porém, ambos os trabalhos mantêm o tema da perda da inocência e da redenção, além de trabalhar com o inusitado.

É um ótimo exercício ler os quadrinhos (a Panini acaba de publicar uma nova edição com os primeiros volumes) e assistir aos episódios na Netflix. Ao elucidar as escolhas dos criadores, você consegue enxergar com mais clareza os limites de cada meio e quais os caminhos que preferiram tomar para se comunicar com o público.

Bem narrada e interpretada, mantendo um permanente estado de graça e fantasia, a série “Sweet Tooth” joga um pouco de açúcar no apocalipse. Ainda bem.

Enquanto os Mitchells e a turma do Gus estiverem por aí, parece que temos salvação.

LINK

Entrevistas com os criadores de “Sweet Tooth”.

VÍDEO

Phil Lord, Cris Miller e Mike Rianda falam sobre o processo criativo de “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”.

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